Descrição de chapéu

Ex-diretor apresenta versão inverossímil, mas CPI extrapola ao mandar prendê-lo sem prova de mentira

Aziz e Renan atribuem ações enérgicas à tragédia de 500 mil mortes, mas rompantes teatrais e sem lastro cabal podem corroer credibilidade da comissão

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Brasília

O ex-diretor do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias apresentou nesta quarta-feira (7) à CPI da Covid uma versão recheada de lacunas sobre a estranhíssima história das negociações mambembes entre autointitulados mercadores de vacina e o governo Jair Bolsonaro, em fevereiro e março deste ano.

Apesar do caráter inverossímil de seu relato, em especial sobre a casualidade do jantar em que teria havido o pedido de propina de US$ 1 por dose da AstraZeneca, história revelada em entrevista do policial militar Luiz Paulo Dominghetti à Folha, não houve prova inequívoca de mentira que justificasse a prisão do ex-diretor.

O ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde Roberto Dias e o senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI da Covid
O ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde Roberto Dias e o senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI da Covid - Pedro França/Agência Senado

Áudios colhidos no celular do PM —ele teve o aparelho apreendido pela CPI no dia do seu depoimento— foram veiculados durante a sessão como a prova de que o ex-diretor do ministério estava mentindo aos senadores.

Nessas mensagens, divulgadas pela CNN Brasil, Dominghetti diz a um interlocutor, no dia 23 de fevereiro, que o negócio das vendas da vacina para o governo brasileiro estava para ser fechado e que seria assinado por Dias, com quem teria marcado um encontro dois dias depois.

Ou seja, o dia do jantar no restaurante Vasto, em Brasília. Ocasião em que Dominghetti, conforme relatou à repórter Constança Rezende, da Folha, ouviu de Dias o pedido de propina de US$ 1 por cada uma das 400 milhões de doses de AstraZeneca cuja venda afirmava intermediar.

Os áudios são um indicativo forte de que o ex-diretor não disse exatamente a verdade à CPI. Em seu depoimento nesta quarta, afirmou aos senadores que estava em um inocente chope com um amigo, em um final de tarde de Brasília, ocasião em que apareceu repentinamente um ex-assessor seu, o coronel da reserva Marcelo Blanco, trazendo consigo Dominghetti.

Durante o próprio decorrer do depoimento, Dias modulou a versão. Em um primeiro momento, dizia que Blanco talvez saberia que ele estivesse no restaurante. Mais pro final, já cravava que o ex-assessor sabia, que ele o havia avisado por telefone.

Tudo muito estranho, mas, objetivamente, não uma prova cabal de mentira. Assim como no relato desta quarta na CPI, há muitas lacunas e contradições por parte de vários outros personagens dessa história, do governo e de fora dele, inclusive de Dominghetti.

Mandar prender "pelo Brasil", como bradou Omar Aziz (PSD-AM), o presidente da CPI, ou por que a paciência se esgotou, como disse Humberto Costa (PT-PE), é dar combustível aos críticos e à claque governista, segundo quem a CPI não passa de um palanque para desgastar um governo que fez de tudo para combater a pandemia e evitar mortes —esta, sim, uma mentira comprovada por uma profusão de robustas provas.

O auto de prisão lavrado pela comissão relatada por Renan Calheiros (MDB-AL) traz justificativas de uma precariedade assustadora.

"O depoente informa que não sabe quem tentaram [sic] exonerá-lo" e "o depoente não explica quem viabilizou sua permanência no cargo, após sucessivas trocas de ministros" são as duas primeiras "evidências" de falta com a verdade listadas no documento.

Mais adiante, toma-se como verdade absoluta o depoimento do deputado Luis Miranda (DEM-DF), segundo quem Dias participou de pressão não republicana para que o governo fechasse contrato para compra da vacina indiana Covaxin.

Achar que alguém está mentindo é bem diferente do que provar que alguém está mentindo. E a CPI não provou.

Roberto Ferreira Dias foi preso nesta quarta-feira, no Senado Federal, porque se encaixou no perfil de alguém que parece estar mentindo, além de não ter quatro estrelas do Exército para lhe dar respaldo.

Da mesma forma que senadores afirmam que a CPI da Covid trata sobre uma situação que já resultou em mais de 500 mil mortes, ou seja, que não pode ser espaço para brincadeiras, é ruim que instrumentos usados para tentar apurar a verdade e as responsabilidades se amparem em achismos ou brados à "Brasil acima de tudo".

Enquanto ainda não estava preso nesta quarta-feira, Dias tentou passar a imagem de um servidor impoluto, movido apenas pela vontade de ajudar o país a ter vacinas.

Sua função, porém, e ele próprio reconheceu isso, não era a de negociar vacina com quem quer que seja, muito menos em situações de informalidade e com reverendos, PMs e afins que afirmavam ter milhões e milhões de doses que quase nenhuma parte do mundo ainda tinha.

Servidor experiente e calejado, como tentou se vender, Dias se imiscuiu nessas negociações clandestinas por mais de um mês, em fevereiro e março deste ano, é o que indicam mensagens que vieram a público entre ele e envolvidos, e entre Dominghetti e outros citados, incluindo Blanco.

O coronel da reserva foi para o ministério na leva de fardados que lá se aboletaram junto com o general da ativa Eduardo Pazuello e sob o discurso de colocar ordem na casa —sendo que o que se viu até agora é que, se de fato colocaram alguma coisa lá, não foi necessariamente ordem.

A CPI foi criada sob o descrédito de muita gente, inclusive do governo, que afirmava que dali não sairia nada. Como comprovado pela história por diversas vezes, ninguém tem condição de dizer o que sairá ou deixará de sair de uma CPI.

A atual já produziu resultados e tem um bom percurso ainda pela frente, muita gente para ouvir, muitos documentos a analisar. Se deixar de lado o espetáculo e se concentrar em fatos, tem potencial para produzir muito mais.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.