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Discursos de Bolsonaro esvaziam 'quatro linhas' da Constituição

Na lógica bolsonarista, responsabilidade pelos direitos sociais se desloca do Estado para cada indivíduo, que passa a ser o único responsável por sua própria vida

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Adriane Sanctis

Doutora em direito, é professora do Instituto de Relações Internacionais da USP e pesquisadora do Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo)

“Não podemos admitir que uma pessoa burle a nossa democracia, não podemos admitir que uma pessoa coloque em risco a nossa liberdade”, afirmou o presidente Jair Bolsonaro em seu discurso na manhã do Dia da Independência.

O recado era para quem está na “Praça dos Três Poderes” e “age fora” da “nossa Constituição”. Mais cedo, compartilhou vídeo dizendo que continuaria jogando “dentro das quatro linhas [da Constituição]”—sua expressão mais recorrente nos últimos dias.

A Constituição de que Bolsonaro fala neste 7 de Setembro tem um sentido muito diferente da realidade jurídico-política brasileira. A ressignificação que o presidente faz em seus discursos tende ao apagamento das próprias funções do Estado constitucional.

Já no primeiro artigo, a Carta afirma ser o Brasil um “Estado democrático de Direito”. Fez uma escolha não por qualquer democracia, mas por um regime sujeito à supremacia da Constituição. Essa supremacia não se aplica apenas aos cidadãos, mas também ao próprio governo.

Esta é a primeira função do Estado constitucional como criação histórica: limitar o poder dos governantes, regular as interações entre Estado e sociedade através da separação dos Poderes e da supremacia do direito.

Bolsonaro se proclamou “porta-voz” dos presentes na manifestação da avenida Paulista. Mais cedo, havia anunciado que iria falar “em nome do povo brasileiro”.

Quando insiste em se colocar como figura que fala pelo “povo” como se este fosse um todo homogêneo, Bolsonaro esvazia o sentido histórico da Constituição como um marco da supremacia da lei. Nem mesmo maiorias podem impor escolhas fora dos mecanismos constitucionais —eleições e representação no Congresso, por exemplo.

Seu discurso também fez a conexão entre o Estado de Direito e a “liberdade”. Bolsonaro recorreu a duas liberdades específicas na véspera do Dia da Independência em suas falas nas redes sociais: livre locomoção (art. 5º, XV) e direito de reunião (art. 5º, XVI).

Contudo, tais liberdades não são cheques em branco para cada indivíduo praticar como bem entender. Estão sujeitas a uma regulação constitucional que lhes impõe limites e condicionantes, sobretudo em função de outros direitos fundamentais, tão valiosos quanto quaisquer liberdades.

A Constituição brasileira, aliás, foi além das regras de organização do Estado e proteção de liberdades civis, e incorporou direitos sociais (como o direito à saúde, por exemplo) e normas programáticas que dão o sentido às políticas públicas.

As principais estão no artigo 3º, que define os objetivos da República: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Em 7 de setembro de 2020, exatamente um ano atrás, Bolsonaro fazia pronunciamento em rede nacional e afirmava “compromisso com a Constituição e com a preservação da soberania, democracia e liberdade” ao mesmo tempo em que traçava um histórico de celebração da Independência.

Falou em “miscigenação entre índios, brancos e negros”, em uma versão defasada e deturpada das centenas de anos de escravidão e da discriminação persistente no país. Exaltou brasileiros da década de 1960 que teriam “defendido as instituições democráticas” contra a “ameaça do comunismo”, voltando a um período que apareceu muitas vezes em outras de suas falas elogiosas a torturadores da ditadura militar.

Naquele momento da pandemia da Covid-19, o discurso surpreendeu por não fazer qualquer menção às vidas de 126 mil brasileiros perdidas até aquele momento para a doença. Hoje, mais uma vez em desrespeito às regras sanitárias, no contexto de um total de mais de 583.866 mortes por Covid, não houve qualquer menção à tragédia de mortalidade no país.

Discurso e a ação —ou omissão— política compõem uma mesma realidade.

Uma pesquisa recente de Isabela Kalil e outros autores (“Politics of fear in Brazil: Far-right conspiracy theories on Covid-19”, Política do medo no Brasil, teorias da conspiração da extrema direita sobre a Covid-19) analisou como Bolsonaro politizou a pandemia, defendendo um retorno em nome do emprego e da economia.

Foi a mobilização de um medo bem enraizado na economia política do sofrimento, que colocava a fome como efeito possível das medidas sanitárias A fome também apareceu em sua fala mais recente contra a demarcação de terras indígenas.

Nessa lógica, a responsabilidade pelos direitos sociais se desloca do Estado —como trata a Constituição— para cada indivíduo, que passa a ser o único responsável por sua própria vida.

O discurso que esvazia as “quatro linhas” da Constituição afasta o Estado de Direito e dá lugar a uma lógica individualista e violadora de direitos fundamentais. As "quatro linhas" da Constituição bolsonarista se referem a uma única ideia fixa: liberdade sem solidariedade, sem diversidade, sem igualdade. Essa não é a liberdade constitucional.

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