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Isolamento marca geração de militares que chegou ao poder com Bolsonaro, diz pesquisador

Antropólogo que estudou formação no Exército vê afastamento de outros setores da sociedade

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São Paulo

O isolamento é uma marca distintiva da geração de militares que chegou ao poder com a ascensão de Jair Bolsonaro, diz o antropólogo Celso Castro, professor da Fundação Getúlio Vargas e autor de um estudo pioneiro sobre a formação dos militares brasileiros que está sendo relançado.

Para o pesquisador, esse isolamento contribuiu para afastar os militares de outros setores da sociedade durante boa parte de suas carreiras e alimentou incompreensões. "O mundo civil é quase uma ficção para eles", afirma Castro. "Essa separação não existe na realidade, mas para eles é clara."

Homem branco jovem de cabelos curtos, vestido com terno escuro e camisa azul clara, com o Pão de Açúcar ao fundo.
O professor Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas no Rio. - Marcelo Freire/Divulgação

Filho de um coronel do Exército, Castro escolheu a formação dos militares como tema de seu mestrado e fez pesquisas e entrevistas com cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras de 1987 a 1988. O livro "O Espírito Militar" foi relançado pelo selo Zahar neste mês, em edição revista e ampliada.

Bolsonaro saiu da Aman em 1977 e deixou o Exército em 1988 como capitão reformado, após ser absolvido pelo Superior Tribunal Militar num caso em que foi acusado de planejar um atentado terrorista. O vice-presidente Hamilton Mourão e vários ministros do governo se formaram na mesma época.

Diretor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Castro ajudou a organizar vários livros sobre a memória da ditadura militar (1964-1985) e publicou neste ano uma longa entrevista com o general da reserva Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército de 2015 a 2019.

Para Castro, a decisão de Villas Bôas de se manifestar no Twitter antes do julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2018 marcou o fim de um longo período de afastamento dos militares da política e abriu caminho para seu envolvimento com o governo Bolsonaro.

Por que o isolamento dos militares em relação ao mundo civil é um problema? A construção da identidade social dos militares envolve a construção de fronteiras com o mundo civil. Na academia, eles criam fronteiras simbólicas, para demarcar as diferenças entre o mundo deles e o mundo civil. O problema é que isso tem levado a um grau elevado de insulamento dos militares.

Na época em que fiz minhas pesquisas na Aman, no fim da década de 1980, mais da metade dos cadetes eram filhos de militares. A maioria tinha estudado a vida inteira em colégios militares antes da academia. Ou seja, há uma endogenia muito grande no recrutamento, que reforça o insulamento.

O mundo civil é quase uma ficção para eles. São os paisanos, como dizem em tom depreciativo. Eles se acham mais disciplinados, mais preocupados com a coletividade, mais honestos, e veem os civis como individualistas, menos honestos, menos patriotas. Essa separação não existe na realidade, mas para eles é clara.

Não é assim no mundo inteiro? Em alguma medida sim, mas há uma variação muito grande no grau de isolamento. O general Villas Bôas entrou na academia no início da década de 1970 e tinha 49 anos de idade ao entrar na Escola Superior de Guerra, quando pela primeira vez passou a interagir com civis mais sistematicamente.

Na entrevista que me concedeu e que foi publicada recentemente, ele fala do Exército como um castelo que os protege e fala do círculo de giz que os separa. Era filho de militar, seus colegas eram todos militares, e passou a vida no meio militar. Ele só começou a conviver com civis mais tarde, adulto.

Os traumas criados pela ditadura militar explicam esse insulamento? Certamente o regime militar foi bastante traumático para as Forças Armadas, mas as entrevistas que fizemos com chefes militares do período mostram que suas memórias são muitas vezes concorrentes. Há consenso sobre o golpe de 1964, mas não sobre a repressão e o uso da força contra opositores.

Quando discutimos a abertura, a falta de consenso entre eles é grande, e alguns chegam ao ponto de qualificar os colegas como traidores e covardes. Quando ouvimos os ministros militares da Nova República, muitos falaram de revanchismo, que de alguma forma achavam que precisaria ser controlado.

Houve uma perda de prestígio social da profissão militar, e isso reforçou o descompasso entre a visão dos cadetes, de que os militares representavam uma grande elite moral, e a realidade. Fora da Aman, quando saíam de férias, muitas vezes eram chamados por civis de carrascos e torturadores.

A volta dos militares à política preocupa? De 1985 a 2018, tivemos um recorde de 33 anos da história brasileira em que não houve nenhuma tentativa de golpe militar, não tivemos manifestos coletivos de oficiais da ativa, nem insubordinações. A história republicana é pontuada com eventos desse tipo, mas não houve nada nesses 33 anos.

Seria uma ilusão achar que houve uma subordinação efetiva dos militares ao poder civil. De alguma forma, a elite política que governou o Brasil durante a Nova República deixou os assuntos dos militares com eles, desde que não perturbassem a democracia. Houve um distanciamento, mútuo.

Muitos colegas meus achavam que havia um limite, que os militares não aceitariam um partido de esquerda no poder, ou Lula, se eleito presidente. No entanto, Lula foi eleito e reeleito, e não houve problema nenhum do ponto de vista militar no governo dele. Tudo parecia tranquilo, até os tuítes do general Villas Bôas.

Ali houve uma manifestação institucional, clara, explícita, política. O general Villas Boas discorda dessa interpretação, diz que foi um alerta, que não cruzou a linha, que ficou em cima da linha. Mas aquilo foi discutido internamente, com o Alto Comando do Exército. Eu acho que o tuíte cruzou a linha.

O que explica a reconciliação de Bolsonaro com a cúpula militar em sua ascensão ao poder, apesar de seu histórico de indisciplina? Bolsonaro saiu do Exército em 1988 e desde então dedicou-se à política. Muitos generais não gostavam dele, mas sua imagem variou muito. Ele defendia pautas caras à corporação, como salários melhores. E sempre foi assumidamente de direita, de extrema direita na composição do Congresso.

A aproximação tem a ver com um contexto mais recente, e o general Villas Bôas dá várias pistas na sua entrevista. Os desdobramentos da Operação Lava Jato e toda essa coisa de corrupção certamente enfatizaram, para os militares, essa visão de que, em termos de valores, os civis são diferentes.

Além disso, ele fala da Comissão Nacional da Verdade, que é vista por essa geração de militares como uma facada nas costas. E critica várias vezes o fenômeno do politicamente correto. É uma coisa um pouco amorfa, que envolve meio ambiente, a questão indígena, gênero, ações afirmativas.

Pode ser uma pista para entender por que houve também uma aproximação ideológica com setores muito conservadores da sociedade brasileira. Perdeu-se a ilusão de que nossos valores eram majoritariamente progressistas, com a ascensão de setores de extrema-direita e antidemocráticos.

É uma novidade quando se olha para a Nova República. Todo mundo era democrata, e durante três décadas quase ninguém se apresentou como de direita. Bolsonaro era uma exceção, e isso pode tê-lo ajudado a se aproximar, nem tanto dos militares, mas dos setores mais tradicionais da população.

O prestígio dos militares na sociedade sobreviverá ao fracasso de Bolsonaro no enfrentamento da pandemia e na recuperação da economia? Esse é o risco inerente à participação deles na política. Uma parte dos militares está muito envolvida. Não é a instituição como um todo, mas uma parte da instituição age como se fosse um partido político. E partidos políticos estão em busca de ganhos, não só eleitorais, mas recursos, influência, poder.

O exercício do poder político coloca os militares num mundo muito diferente do que eles representam como sendo o mundo militar. O mundo da política não é feito de amigos e inimigos. O inimigo de hoje é o amigo de amanhã, e aqueles que eram bandidos não são mais, agora são o nosso esteio.

Mas há muita simplificação. É importante ver quem são os militares que estão ocupando essas posições, o que eles representam, e entender o mundo deles. Com o distanciamento atual, inclusive no meio acadêmico, há o risco de de termos um déficit de compreensão de um fenômeno muito complexo.

CELSO CASTRO, 58

Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas no Rio e diretor do seu Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), é doutor em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ. Além de "O Espírito Militar", publicou "Os Militares e a República" (Zahar, 1995) e "General Villas Bôas" (FGV, 2021) e foi um dos organizadores de uma série de oito livros de entrevistas com chefes militares que participaram da política brasileira depois do golpe de 1964.

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