O governo Jair Bolsonaro (PL) autorizou o repasse de R$ 6,2 milhões a duas ONGs até então inativas e recém-assumidas pelo ex-jogador Emerson Sheik e por Daniel Alves, lateral-direito da seleção brasileira de futebol.
As entidades tiveram projetos aprovados no ano passado para realização de cursos de esportes, mesmo sem ter nenhuma experiência prévia. A assinatura dos dois convênios só foi possível porque os atletas driblaram exigências legais usando as chamadas "ONGs de prateleira".
Ambas foram beneficiadas com emendas parlamentares a pedido de deputados da base do governo. A verba foi empenhada (reservada no Orçamento), mas não chegou a ser paga.
O Ministério da Cidadania disse não haver ilegalidades e, nesta terça-feira (5), após a revelação do caso pela Folha, afirmou que Sheik desistiu do convênio.
Membros do Ministério Público e parlamentares ouvidos pela reportagem afirmam que "ONGs de prateleiras" têm sido usadas para escapar da regra que estabelece a necessidade de as entidades da sociedade civil existirem há pelo menos três anos para firmar acordos com o governo federal.
Essas associações são antigas, sem atividade, e muitas vezes comercializadas a fim de cumprir o prazo exigido pela lei.
Os dois atletas assumiram os institutos meses antes de apresentarem proposta de convênio ao governo federal. Para comprovar a capacidade técnica necessária para a execução dos projetos, ambos listaram, principalmente, feitos da carreira como jogador e imagens suas durante partidas de futebol.
Emerson Sheik assumiu em dezembro de 2019 o Instituto Qualivida, fundado há 26 anos, mas que nunca realizou projetos sociais voltados aos esportes. Logo em seguida, o ex-jogador alterou o estatuto, os membros e o nome da entidade.
O Instituto Emerson Sheik, novo nome da ONG, apresentou em julho do ano passado seu primeiro projeto ao governo federal. Em dezembro, foi assinado o convênio para a instalação de três núcleos esportivos em Mangaratiba (RJ) e Queimados (RJ) por R$ 2,7 milhões.
A verba foi alocada a partir de uma emenda parlamentar da bancada do Rio de Janeiro a pedido do deputado Hélio Lopes (PL -RJ), um dos parlamentares mais próximos de Bolsonaro.
Nesta terça, o Ministério da Cidadania disse que o instituto de Sheik decidiu cancelar o acordo por meio de um ofício enviado na última sexta-feira (1º). Dias antes, em 23 de março, Sheik havia sido procurado pela primeira vez pela Folha para falar sobre o convênio.
A desistência de Sheik foi decidida em consenso com o deputado Hélio Lopes, para evitar questionamentos futuros. Oficialmente, a ONG citou "motivo de mudanças internas na entidade que impossibilitariam o cumprimento do objeto da proposta".
Sheik aparece com frequência em fotos ao lado de bolsonaristas, como o filho mais velho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), com quem conversou sobre projetos sociais para Mangaratiba em seu gabinete em Brasília em 2020.
Ele também apoiou a campanha da ex-mulher do presidente e mãe de seus três filhos mais velhos, Rogéria Bolsonaro, para vereadora do Rio em 2020. É próximo do deputado estadual bolsonarista Anderson Moraes (PL-RJ), que emprega Rogéria em seu gabinete.
Além disso, o ex-jogador transita pela Secretaria Nacional de Esportes, órgão com quem chegou a celebrar o convênio. No ano passado, ele foi convidado pelo secretário Marcelo Magalhães para ser embaixador dos Jogos Escolares Brasileiros (JEB’s).
Sheik passou a última festa de virada de ano junto com o secretário-adjunto da pasta, André Barbosa Alves, no resort Portobello, em Mangaratiba, onde o ex-jogador tem uma casa.
Na mesma imagem, aparece o atual presidente da ONG de Sheik, Marcos Vinicius Antunes, amigos e parentes do atleta que também integram a instituição.
O comprovante de endereço do instituto do ex-jogador apresentado ao governo é uma conta de luz da empresa Ceni Compra e Venda e Locação de Imóveis Próprios Ltda, de propriedade do ex-jogador. A sala indicada, porém, está vazia.
O Instituto Emerson Sheik buscou comprovar experiência técnica na área do projeto —outra exigência da lei— listando partidas organizadas pelo ex-jogador com arrecadação de alimentos para doações e descrevendo suas conquistas como atleta.
"Emerson Sheik nunca esqueceu as dificuldades enfrentadas no decorrer da vida e seu desejo de ajudar o próximo esteve sempre presente em seu caminho", afirma o documento.
Em Mangaratiba, as diretoras das escolas indicadas para receber as atividades não sabiam do convênio. O irmão de Sheik, Cláudio Passos, é subsecretário de Esportes no município.
ONG usada por Daniel Alves estava inativa havia 5 anos
Já o Instituto DNA, de Daniel Alves, firmou contrato de R$ 3,5 milhões em dezembro com a secretaria para instalar três núcleos de basquete 3x3 na Bahia, Pernambuco e Distrito Federal.
A entidade chamava-se Instituto Liderança até maio do ano passado e tinha como responsável Leandro Costa de Almeida, ex-treinador de basquete. Ele afirma que a ONG estava inativa havia cinco anos, após ter realizado alguns projetos sociais bancados por apoios privados.
Leandro disse ter sido procurado por um amigo em comum com Daniel Alves e que abriu mão da entidade após ouvir os planos do lateral direito. "Por que não vou ceder [a entidade] para alguém que quer fazer o bem?"
O ex-treinador de basquete afirmou que não houve negociação financeira para a transferência da instituição. Mas declarou que o jogador passou a apoiar projetos sociais tocados por ele.
"Ele apoia, mas não foi uma condição para que ele assumisse o instituto, muito menos um preço. O que houve foi uma cessão do instituto por ideologia."
Antes de assumir o Liderança, Daniel Alves já havia fundado seu próprio instituto com seu nome em março de 2021. Segundo o diretor técnico da ONG, Rodrigo Valentim, verificou-se depois da fundação desta entidade a necessidade de existência de três anos para firmar convênios com o governo federal.
"Quando estudamos o processo para a captação de recursos, viu-se que tinha esse prazo. Fomos buscar algumas entidades para fazer parcerias", disse Valentim.
Questionado se considerava a manobra um meio de driblar a exigência legal de três anos de existência, Valentim disse que o objetivo foi acelerar o processo de obtenção de recursos federais para ampliar o atendimento da ONG.
Segundo ele, o apoio de Daniel Alves a projetos a que Leandro fez referência foi apenas a inclusão do basquete no rol de esportes a serem desenvolvidos nos centros da ONG do lateral.
A inauguração oficial da sede do Instituto Daniel Alves ocorreu na sexta-feira (25) em Lauro de Freitas (BA). Valentim disse que a ONG começou a oferecer cursos esportivos um mês antes com cerca de R$ 2 milhões disponibilizados pelo jogador, atendendo a 700 crianças.
A verba federal foi obtida por meio de emenda do relator do Orçamento, a pedido da deputada Celina Leão (PP-DF). A deputada emprega em seu gabinete Ana Cristina Valle, ex-mulher de Bolsonaro.
A regra que exige três anos de existência de uma entidade para firmar convênio com o governo federal foi incluída no marco regulatório das ONGs.
A lei, de 2014, foi discutida na esteira dos escândalos de fraudes cometidas por meio de convênios com algumas dessas entidades, objeto de investigação do TCU (Tribunal de Contas da União) e uma CPI no Congresso.
"Percebeu-se que entidades foram constituídas apenas para a celebração de convênios. Eram instituições sem experiência ou atividade desenvolvida. Era apenas uma forma de transferência de recursos", afirmou Natasha Salinas, professora da FGV Direito Rio.
"Essa lei queria responder a uma série de problemas identificados nessa época e a ajudar as boas entidades do terceiro setor. Essa regra específica é para evitar corrupção, desvio de recursos. Foge totalmente ao espírito da lei assumir uma entidade que não vinha desenvolvendo nada para firmar o convênio."
Não há ilegalidade nas parcerias, diz governo
O Ministério da Cidadania afirmou, em nota, que não havia "ilegalidade na celebração das parcerias".
"As duas entidades apresentaram atestado de capacidade técnica e possuem histórico de projetos realizados na área do esporte", disse a pasta.
Instado a detalhar qual é o "histórico de projetos realizados", o ministério não respondeu. Nesta terça, porém, informou sobre a desistência de Emerson Sheik.
O ex-jogador foi procurado no dia 23 de março em Mangaratiba, onde mora. Ele respondeu no dia 30 de março afirmando que só poderia falar na quarta-feira (6) sobre o assunto.
A reportagem insistiu, pedindo resposta às perguntas enviadas ou uma entrevista por telefone, mas ele não respondeu mais. No dia 1º, Sheik decidiu pedir o cancelamento do convênio.
Daniel Alves afirmou à Folha que assumiu o Instituto Liderança para ampliar a capacidade de absorção de crianças em seus projetos.
"Decidi assumir o Instituto Liderança/DNA para apoiar projetos sociais. Neste caso, em especial, os voltados ao basquete. Sou muito amigo do Leandrinho e do Varejão. Sei o poder que o esporte tem de transformação. Assim como transformou a minha vida quero transformar a dos outros. Por isso quis dar agilidade à capacidade de captação do instituto", disse ele.
Ele afirmou que conseguiu um convênio com valor expressivo em razão da "dimensão dos projetos apresentados e pela seriedade dos trabalhos por mim desenvolvidos".
"Atualmente, atendemos 650 crianças e adolescentes em dois núcleos, com recursos exclusivamente privados, provenientes de meu aporte pessoal. Pretendo fazer o que estiver ao meu alcance para aumentar o número de projetos sociais e o número de crianças atendidas", disse ele.
Segundo ele, os dirigentes do instituto fizeram contato com vários deputados para obter recursos. "A deputada Celina, por priorizar o esporte, nos apoiou."
O gabinete de Hélio Lopes disse que o parlamentar pediu a emenda após gostar do projeto apresentado. Celina Leão não respondeu aos questionamentos.
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