Bolsonaro foi militar indisciplinado e passou das franjas do baixo clero à Presidência

Presidente sempre cultuou a ditadura de 1964 e coleciona frases elogiosas a práticas antidemocráticas

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São Paulo

Aos 67 anos, Jair Messias Bolsonaro é titular de uma das mais improváveis carreiras da história política brasileira. Militar indisciplinado, vicejou pelas franjas do baixo clero da Câmara dos Deputados por 28 anos e chegou à Presidência da República em uma campanha fulminante em 2018.

Agora, ao tentar a reeleição, enfrenta a popularidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a si mesmo e o personagem que criou ao longo de anos de discurso radical.

O presidente Bolsonaro durante evento de campanha em Sorocaba, no interior paulista
O presidente Bolsonaro durante evento de campanha em Sorocaba, no interior paulista - Zanone Fraissat - 13.set.22/Folhapress

Não se pode dizer que ele foi de todo malsucedido: desde maio do ano passado, sua intenção de voto permaneceu em torno de 30% —marcou 33% na mais recente pesquisa do Datafolha. Como as multidões nas ruas no 7 de Setembro mostraram, há muita gente disposta a comprar o ideário bolsonarista.

O problema é que o número é acompanhado de uma rejeição inaudita: no período, nunca ficou abaixo de 51% (e está em 52%) o índice de pessoas que afirmam não votar nele de forma alguma. Simbólica no processo é a rejeição ainda maior entre mulheres, dado o machismo que permeia as falas do presidente.

O recrudescimento da violência política, que fez 9% dos eleitores dizerem que podem desistir de votar, é a sombra que acompanha a imprevisibilidade do presidente ante a possibilidade de não se reeleger.

Ainda que tenha amainado relativamente o discurso golpista nas últimas semanas, uma certeza une aliados e adversários: Bolsonaro dificilmente aceitará a eventual derrota passivamente.

Nesta semana, a Folha publica textos para explicar ao leitor um pouco mais sobre as trajetórias recentes de Bolsonaro, Lula, Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB) —os mais bem colocados nas pesquisas.

Bolsonaro e suas origens

Nascido em Glicério (SP), registrado em Campinas e criado em Eldorado, Bolsonaro sempre disse ter tido contato com as tropas que procuravam guerrilheiros de Carlos Lamarca na sua cidade ainda adolescente.

Entrou no Exército e cursou a Academia das Agulhas Negras, visando a formação de oficiais. Chegou a capitão com carreira não exatamente brilhante, de acordo com superiores, e teve problemas disciplinares.

A ruptura ocorreu em 1986, quando escreveu artigo reclamando do salário e, no ano seguinte, foi acusado de planejar atentados em quartéis para pressionar por melhores soldos. A trama nunca se confirmou, mas Bolsonaro caiu em desgraça e pediu para sair, após ser absolvido pela Justiça Militar dois anos depois.

Em 2018, com a bênção do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, sua candidatura foi abraçada por influentes generais da reserva, que compuseram um dos núcleos de seu governo. Benesses foram distribuídas, mas a relação com os fardados teve momentos de grande estresse, como na crise que derrubou todo o comando militar e o ministro da Defesa em 2021.

Bolsonaro e o Legislativo

Sua vida parlamentar começou em 1989, como vereador no Rio. Popular entre militares e policiais, foi eleito deputado federal no ano seguinte, assumindo em 1991. Sempre obteve votações crescentes baseadas em promessas corporativas, mas sua produção legislativa em 28 anos se resumiu a um projeto convertido em lei, versando sobre prorrogação de benefícios fiscais para o setor de informática em 2001.

Apresentou outros 169 projetos, que nunca andaram. Bolsonaro foi um típico deputado do baixo clero, jargão para aqueles parlamentares que não se destacam e acabam sendo massa de manobra dos grandes blocos partidários. Nunca relatou projetos importantes, presidiu comissões ou representou um dos oito partidos a que foi filiado no período —sua nona sigla é a atual, o PL, em que ingressou em 2021.

Tanto foi assim que as principais acusações contra ele dizem respeito a práticas usualmente associadas a esse perfil de político: contratação de funcionários fantasmas, uso irregular de auxílio-moradia, rachadinhas. Quando votava, deixava transparecer o perfil estatizante e intervencionista.

Bolsonaro e as polêmicas

Se não se destacava pelo trabalho ordinário, foi um rei das polêmicas. Ao longo dos anos, sugeriu o fechamento do Congresso, a instalação de uma ditadura, o fuzilamento de 30 mil brasileiros (o então presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, incluso) e o armamento indiscriminado da população.

Dedicava boa parte de seu tempo a atacar homossexuais e mulheres. O caso mais notório ocorreu com a deputada Maria do Rosário (PT-RS), em 2003. Discutindo direitos de criminosos, Bolsonaro disse que não a estupraria porque ela "não merecia". Em 2014, voltou ao tema. Acabou processado e teve de indenizá-la.

Seu gabinete glorificava a ditadura (1964-85) e comparava aqueles que procuravam desaparecidos da Guerrilha do Araguaia a cachorros, por "gostarem de osso". Candidato, disse que quilombolas eram gordos e preguiçosos e afirmou que seu ídolo era o notório torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015).

Presidente, enumerou casos controversos, particularmente no manejo da pandemia de Covid —disse que a doença seria uma "gripezinha", negou "ser coveiro" para falar dos mortos, promoveu medicamentos sem eficácia e protelou compra de vacinas. Na campanha, retomou o antipetismo que o ajudou em 2018, chamando Lula de ladrão e quadrilheiro, sugerindo a extirpação do PT da vida pública.

Bolsonaro e a Presidência

A partir da erupção dos protestos de junho de 2013, Bolsonaro percebeu que poderia destacar sua mensagem gastando pouco dinheiro, a partir da projeção que as redes sociais davam.

Os arquitetos da guinada foram seus filhos, em especial Carlos, caçula entre os homens do núcleo duro da família —o mais novo, Jair Renan, 24, mora com a mãe, segunda ex-mulher do deputado. Bolsonaro tem também uma filha, Laura, 11, cujo gênero o pai atribuiu a uma "fraquejada" na concepção.

Foi Carlos, vereador pelo Republicanos do Rio, quem criou a estratégia por meio de redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas. Decisões políticas eram compartilhadas com o hoje senador Flávio (PL-RJ) e o verniz trumpista do bolsonarismo, a cargo do deputado federal Eduardo (PL-SP).

Com a cisão do país na eleição de 2014 e o processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016, os Bolsonaro perceberam que a capilaridade digital atingia uma franja nova surgida das ruas. Mais à direita e radicalizada do que o eleitorado típico do PSDB, essa fatia da população parecia pronta para ser colhida.

A decisão pela candidatura foi sacramentada em outubro de 2015, quando a crise do governo Dilma já parecia terminal, em uma reunião do então deputado com Eduardo e políticos catarinenses em um hotel de Balneário Camboriú, após uma visita à Oktoberfest de Blumenau.

Com o antipetismo e a antipolítica a pleno vapor, após anos de revelações de corrupção pela Lava Jato, Bolsonaro vestiu-se de "outsider". Lustrou sua candidatura junto ao mercado financeiro ao adotar um discurso liberal tão radical quanto limitado na prática do poder, encarnado na figura de Paulo Guedes.

Não com pouca ironia, a Lava Jato viria a ser desmontada justamente pela Procuradoria-Geral da República aliada a Bolsonaro, e o juiz-símbolo Sergio Moro foi de ministro da Justiça a adversário, tendo sido desautorizado como imparcial pelo Supremo. Casos de corrupção passaram a frequentar o noticiário.

Com apenas oito segundos na rádio e na TV, Bolsonaro viu sua intenção de voto crescer fortemente após o episódio em que foi esfaqueado em Juiz de Fora, no dia 6 de setembro de 2018. Ficou ausente da campanha, sendo submetido a cirurgias, e acabou derrotando Fernando Haddad (PT), lugar-tenente de um Lula impedido de concorrer por estar preso e condenado, por 55,13% a 44,87%.

Seu governo foi marcado por imobilismo na articulação política e alguns avanços na economia: a reforma da Previdência foi aprovada em 2019, assim como marcos regulatórios e a autonomia do Banco Central. Na economia, viu o retorno da inflação a índices mais altos, agora combatida com o amargo remédio dos juros altos, e o desemprego cair, embora sem recuperação expressiva de renda.

Católico, apostou forte no segmento evangélico que o apoiou em 2018, quando teve 70% dos votos entre aderentes dessas denominações —hoje tem em torno de 50% das intenções de voto nessa fatia, cerca de 25% do eleitorado. O casamento com a atual mulher, Michelle, foi celebrado pelo pastor Silas Malafaia.

Bolsonaro e o golpismo

Nas últimas semanas, o peso de sua má avaliação fez com que o centrão, que o reabsorveu após a apoplexia golpista do 7 de Setembro de 2021, conseguisse um certo recuo na agressividade e no recurso ao golpismo —na forma de contestação do sistema eleitoral, pedra de toque do presidente desde 2018.

Até aqui, não fez efeito nas pesquisas, assim como a melhoria econômica e o pacote de bondades que entregou nos últimos meses, a preço que será cobrado de quem estiver sentado em sua cadeira em 2023. Na segunda (19), contudo, ele retomou o tom ao sugerir que haveria "algo de errado" no Tribunal Superior Eleitoral em caso de derrota no primeiro turno.

"Trump dos trópicos", dado que emula o modus operandi do ex-presidente americano, de quem é seguidor declarado, Bolsonaro é associado frequentemente a um cenário Capitólio, em referência à invasão do Legislativo americano por apoiadores trumpistas que não aceitavam a derrota do líder, no ano passado.

O presidente sempre cultuou a ditadura de 1964 e coleciona frases elogiosas a práticas antidemocráticas. No cargo, usou o fato de ser comandante das Forças Armadas para criar uma sensação de apoio militar. Se os fardados têm mais simpatia a ele do que a Lula, isso não significa sustentação estrutural a golpismos.

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