Comissão de Ética deve explicar ministros sem quarentena, diz ex-presidente do órgão

Mauro Menezes afirma que lei ampara Lula na troca de conselheiros ligados a Bolsonaro

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Brasília

Até pela falta de transparência nos últimos anos, não é possível afirmar que a Comissão de Ética Pública destrancou a chamada porta giratória para autoridades transitarem livremente entre os setores público e privado, mas é certo que agora ela tem a oportunidade de esclarecer as decisões apontadas como duvidosas. A avaliação é do advogado Mauro Menezes, ex-presidente do órgão de controle.

Ligada à Presidência República, a comissão foi criada em 1999 para evitar e punir casos de conflito de interesse, além de recomendar punições por desvios praticados por servidores públicos de alto escalão, especialmente ministros e secretários.

"Estamos identificando um mal-estar relacionado à porta giratória e a aplicação da Lei de Conflito de Interesses", afirma Menezes.

Mauro Menezes, ex-presidente da Comissão de Ética Pública - Alan Marques-25.nov.16/Folhapress

Causou estranhamento, por exemplo, que ministros da gestão bolsonarista tenham sido liberados para ocuparem cargos em empresas privadas sem exercerem a quarentena, o descanso remunerado de seis meses que busca evitar que autoridades compartilhem com os novos empregadores informações estratégicas do governo.

Bruno Bianco, ex-advogado-geral da União, e Fábio Faria, ex-ministro das Comunicações, aceitaram convites do BTG. O banco atua em diferentes segmentos de negócio, inclusive fibra ótica, tema acompanhado por Faria no governo. Marcelo Sampaio, ex-ministro da Infraestrutura, vai para Vale, dona de ferrovias e portos.

"A Comissão de Ética terá a missão de promover uma análise criteriosa, caso a caso, e verificar se houve distorções e vícios, promover as necessárias correções e fazer a prestação de contas à sociedade", diz Menezes.


Na virada de mandato presidencial, a Comissão de Ética Pública tomou decisões que alimentaram debates. Concedeu um grande número de quarentenas remuneradas ao mesmo tempo em que liberou ministros para irem diretamente a iniciativa privada. O sr. considera as decisões atípicas? É da jurisprudência da comissão conceder quarentena sem apresentação de proposta de trabalho em casos notórios, como o de ministro da Fazenda e presidente do Banco Central. Não se cobra nessa instância que eles busquem propostas em uma instituição financeira, por exemplo, para que possam gozar da quarentena. A quarentena é uma decorrência nessa esfera de responsabilidades.

Agora, se você me fala de um DAS 5 ou 6 (Direção e Assessoramento Superior nível 5 e 6, cargos de confiança mais altos), na maioria dos casos, se espera que o proponente traga a evidência de que foi convidado para trabalhar em determinada função em uma empresa privada; e um eventual conflito será avaliado.

No caso de liberação da quarentena dos ministros, existe uma atenção maior, e me parece que geram mais tensão.

De fato, é preciso verificar como tramitaram os processos em que uma instituição financeira que contrata dois ministros que sequer são da área financeira. Da mesma maneira, também é preciso ver como um ministro da área de infraestrutura vai para uma corporação como a Vale sem cumprir quarentena.

Ninguém está dizendo que eles não possam trabalhar nessas instituições. Podem. No entanto, a lei 12.813 prevê quarentena de seis meses para casos sensíveis. Um ministro tem informações que podem resultar em ganho econômico-financeiro e de oportunidades de contratos públicos imediatamente após a saída. Depois de seis meses, tudo muda muito, e isso já não é um valor tão importante.

Em suma, eu precisaria examinar caso a caso para fazer um juízo. Abrir o envelope e olhar o voto, porque ele precisa ser disponibilizado após o processo de consulta. Mas, em princípio, eu não vejo atipicidade.

Por que essas informações não são públicas? Uma vez o processo findo, ele é público pela Lei de Acesso à Informação.

Mas não estão disponíveis no site da Comissão, por exemplo. Pode ser demandado. Segundo um dispositivo no regimento da comissão, os processos são sigilosos enquanto tramitam. Durante o trâmite, antes, a Comissão divulgava os andamentos —relator do caso tal é o fulano de tal, a data do julgamento tal é dia tal.

Uma vez que processo termina, não há impedimento para o acesso.

A comissão também costumava divulgar o voto prevalecente. Nele estão os fundamentos da decisão. Para preservar alguma circunstância íntima, de natureza privada ou comercial, utilizava-se uma tarja nesses trechos sensíveis.

Quem acompanha esse tema afirma que a Comissão de Ética ficou menos transparente nos últimos anos, por diferentes motivos, mas também por ter reduzido a divulgação de informações como essas que o sr. mencionou. Concorda com essa percepção? Houve, de fato, uma mutação na maneira como a Comissão encara a questão da transparência e, em consequência, da publicidade de suas decisões. No início, tinha uma sobriedade um pouco excessiva. Na década passada, a partir de 2012, experimentou uma maior abertura, se comprometeu ao exame social, muitas vezes por meio de análises feitas até pela imprensa.

A Comissão de Ética tem o propósito e a obrigação de lançar um olhar ético sobre a atividade pública e suas relações com o setor privado. Foi atuante como freio e contrapeso. No governo de Dilma Rousseff, autoridades receberam sanções, foram compelidos a deixarem seus cargos. No governo de Michel Temer também.

O governo Bolsonaro, em vários aspectos, debilitou as ferramentas de controle. Questões de ética pública, muitas delas suscitadas pela própria imprensa, eram menosprezadas. O noticiário está farto de exemplos. Assim, a comissão submergiu e pouco dialogou com a sociedade para o cumprimento do seu papel.

A falta de dados não permite fazer comparações no tempo, como se o número de dispensas da quarentena aumentou ou diminuiu. Porém, quem acompanha o tema avalia que houve uma espécie de "liberou geral" no governo Bolsonaro. O sr. concorda? Não tenho elementos para dizer que tenha havido um número maior de concessões sem critério. Não vejo esse fenômeno. Eu já estive na comissão e posso dizer que ela precisa impor a quarentena. Imposta corretamente, ela não é uma benesse pelo fato de haver uma remuneração compensatória, mas uma proteção de informações que podem gerar conflito de interesse na iniciativa privada.

Reforço isso porque chamou a atenção a liberação da quarentena não apenas de ministros, como agora, mas até em outros escalões. Citando um exemplo público bem conhecido, Diogo Mac Cord saiu de secretário Especial de Desestatização do Ministério da Economia e no dia seguinte se tornou sócio da consultoria EY, autorizado pela comissão. Pois é. Por isso é preciso que se abra o conteúdo das decisões. Temos situações que saltam aos olhos.

Você acompanhou o que ocorreu com a Lei de Acesso à Informação. Multiplicaram-se os casos de sigilo, o que reduziu a transparência. Eu participei da transição de governo como relator do grupo de trabalho sobre transparência, integridade e controle. O coordenador era o hoje ministro Jorge Messias [Advocacia-Geral da União].

Havia um mal-estar generalizado quanto aos sigilos. O grupo transição elaborou um trabalho que foi aproveitado pela CGU [Controladoria-Geral da União]. Há poucos dias, o ministro-chefe da CGU divulgou uma relação de 12 critérios para reexame desses sigilos, e também eventuais imposições de novos sigilos. Com base neles, identificaram mais de 200 casos em que os sigilos ficaram à margem desses critérios. Vai haver uma análise caso a caso e a eventual divulgação.

Isso vale para Comissão de Ética Pública.

Estamos identificando um mal-estar relacionado à porta porta giratória e a aplicação da Lei de Conflito de Interesses. Seriam dois vícios, em dois polos diferentes. Autoridades, com alto potencial de deterem informações privilegiadas, teriam sido liberadas para trabalharem em setores sensíveis. Mas também se questionam a concessão de quarentenas para autoridades que não precisariam, com a liberação inadequada de remuneração compensatória e ônus desnecessário ao erário.

A Comissão de Ética terá a missão de, assim como aconteceu na CGU em relação à Lei de Acesso à Informação, promover uma análise criteriosa, caso a caso, e verificar se houve distorções e vícios, promover as necessárias correções e fazer a prestação de contas à sociedade.

Na sequência do caso dos ministros, Lula trocou três conselheiros que pelo regimento —não pela lei— têm mandato de três anos. Qual a sua avaliação sobre esse gesto? Não acho que existe relação de causa e efeito aí. Há incompatibilidades. Fábio Prieto estava na comissão e assumiu, em janeiro, como secretário de Justiça e Cidadania do estado de São Paulo —um cargo de confiança do governador em outra unidade da federação. Me parece incompatível que ele acumule as funções. É uma restrição de âmbito federativo.

A Comissão de Ética Pública é regida pelo decreto 6.029, que regula o sistema de gestão da ética. Embora no artigo terceiro diga que os integrantes têm mandato de três anos, no artigo dez, considera indispensável para o exercício da função a imparcialidade e a independência. Na condição de secretário do estado de São Paulo, Prieto não mais detém a imparcialidade para a função.

Além do mais, o mandato dos membros da comissão não tem fundamento em lei, senão neste decreto e em outro. Então, não existe direito adquirido decorrente de lei. A sua dispensa foi um ato lógico e fundamentado juridicamente.

Os ex-presidentes da República têm um estafe de assessores que cuidam de seu dia a dia, que dá apoio institucional e se subordinam à autoridade daquele ex-presidente. João Henrique Nascimento foi nomeado em dezembro para o cargo de assessor de Bolsonaro.

É evidente que, nessa posição, não pode atuar como membro de uma comissão que controla a conduta dos integrantes do novo governo eleito. Até presumo que isso foi feito com a intencionalidade de promover um tipo de longa manus de um governo que se encerra sobre um governo que se inaugura.

Célio Faria Júnior foi chefe de gabinete do ex-presidente Bolsonaro. Quando foi nomeado para a comissão, ocupava o cargo de ministro-chefe da Secretaria de Governo, ali mesmo no Palácio do Planalto. A sua nomeação já foi viciada nos estertores do governo. Um ministro no exercício do cargo não pode ser nomeado para uma função que controla a conduta de todos os outros ministros de Estado.

Aquilo foi uma aberração do ponto de vista jurídico e teve como objetivo, mais uma vez, distorcer o caráter isento da comissão.


RAIO-X | Mauro Menezes, 56

Graduado em direito pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), mestre na área pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e doutorando em ciências jurídicas e políticas pela Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha, na Espanha. É professor convidado da Universidade Castilla-La Mancha (Espanha). Atuou como conselheiro e também presidente da Comissão de Ética Pública, e integrou o Conselho de Transparência Pública. Atualmente é diretor-geral do Escritório Mauro Menezes & Advogados

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