Governo Lula quer recompor Comissão de Mortos e Desaparecidos com dispensados por Bolsonaro

Colegiado extinto por ex-presidente tem apurações a fazer sobre vítimas da ditadura em cemitérios e valas clandestinas

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São Paulo

O governo federal decidiu reconduzir ao cargo antigos integrantes da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, extinta pelo governo Jair Bolsonaro no apagar das luzes de 2022. A procuradora federal Eugênia Gonzaga, destituída da presidência do colegiado em 2019, deve voltar ao posto.

Segundo o Ministério dos Direitos Humanos, também voltarão Vera Paiva e Diva Santana, representantes dos familiares de desaparecidos políticos durante o regime militar, e o procurador Ivan Marx, que representa o Ministério Público Federal.

"A comissão está formada, mas houve dois imprevistos", diz Nilmário Miranda, assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade da pasta.

"Primeiro, demorou a indicação da Câmara dos Deputados, porque demoraram a definir as comissões. Segundo, o previsto era que o presidente Lula fizesse um despacho [reinstalando a comissão] nesta sexta-feira (31), mas ele pegou pneumonia. Íamos apresentar para as famílias, mas tem que ter um decreto já publicado."

Enterro do estudante Edson Luís, assassinado em 1968 durante confronto entre a PM e estudantes no Rio de Janeiro
Enterro do estudante Edson Luís, assassinado em 1968 durante confronto entre a PM e estudantes no Rio de Janeiro - Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Eugênia Gonzaga deixou o cargo depois de um imbróglio com o então presidente Jair Bolsonaro.

A comissão tinha determinado a correção do atestado de óbito de Fernando Santa Cruz, que desapareceu junto com o amigo Eduardo Collier Filho em 1974, depois de serem presos por agentes da repressão. O objetivo da medida era que o atestado dissesse que Santa Cruz foi vítima da violência de Estado.

Como resposta, Bolsonaro trocou 4 dos 7 integrantes do grupo. No lugar de Gonzaga, entrou Marco Vinicius Pereira de Carvalho, ligado a Damares Alves, hoje senadora e à época ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

O argumento oficial foi que os trabalhos do grupo teriam acabado e não havia mais como avançar.

"Isso é bobagem. Não há mais casos para [a comissão] julgar há muito tempo, mas a busca por restos mortais precisa continuar", diz Nilmário de Miranda.

Santa Cruz e Collier Filho fazem parte de uma lista de 243 desaparecidos políticos feita pela Comissão Nacional da Verdade. A busca pelo paradeiro dos corpos ainda não localizados tem várias frentes inconclusas —inclusive por entraves que antecedem a gestão Bolsonaro.

"A comissão foi criada em 1995 sem verbas e sem estrutura técnica", diz Eugênia Gonzaga. "Quando assumi, parlamentares passaram a destinar recursos de emendas para nossos trabalhos. Foi assim que conseguimos avançar."

O colegiado pode enfrentar o mesmo problema quando for recriado. Nilmário diz que, como o grupo foi extinto, não havia previsão de verbas para ele no Orçamento: "Vamos ter que ver como resolver isso".

Uma das principais frentes de trabalho ainda aberta é o caso da vala clandestina de Perus, descoberta no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, nos anos 1990 –desde então, apenas cinco desaparecidos foram identificados, os últimos dois em 2018.

O conjunto encontrado em Perus é composto por 1.049 caixas com ossadas, hoje sob os cuidados do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) da Unifesp, que capitaneia as pesquisas. Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier Filho são dois dos procurados ali.

De acordo com o médico Samuel Ferreira, coordenador científico da comissão, já foi analisado o material genético de 750 pessoas. Há ainda um conjunto de 151 casos com resultado previsto para até o fim de abril.

"Desse conjunto todo, existem amostras degradadas que talvez precisem de novas análises, porque são ossadas muito antigas", diz Ferreira.

Uma vez finalizada essa etapa, ainda faltarão as pesquisas envolvendo as caixas com ossos de diferentes pessoas misturados, que são 26% do total. Além disso, também é preciso investigar quais vítimas da ditadura podem ter sido sepultadas em Perus, mas fora da vala.

"Estimo que tenhamos entre três a cinco anos de trabalho pela frente", diz o professor Edson Telles, coordenador do Caaf.

Telles conta ainda que a universidade recebeu, no ano passado, ossos que podem ser de até oito pessoas e estavam em Petrópolis, onde funcionou a Casa da Morte, um dos mais terríveis centros de tortura do regime militar.

Além disso, a universidade detém hoje restos mortais exumados em outros cemitérios, como o de Vila Formosa, também em São Paulo –há a suspeita de que os corpos de 12 vítimas da ditadura ainda possam estar lá.

Também há outros cemitérios a serem alvo de investigações fora de São Paulo. A Comissão da Verdade apontou que os corpos de pelo menos 15 militantes de esquerda podem ter sido sepultados em uma vala clandestina em Ricardo Albuquerque, no Rio de Janeiro, onde foram encontradas 2.000 ossadas.

Outro ponto crucial são as apurações envolvendo a Guerrilha do Araguaia. Ao longo dos anos, o governo federal realizou expedições à região e encontrou várias ossadas, mas as identificações de restos mortais precisam prosseguir –e há novas buscas a ser realizadas.

É um trabalho que envolve não só viagens para escavações. Além da busca por testemunhas, há toda uma pesquisa histórica a ser feita: no caso dos cemitérios, por exemplo, os números em livros e guias antigos raramente batem com o número atual de sepulturas. Por isso, é preciso fazer um mapeamento desses espaços.

Para Eugênia Gonzaga, o trabalho seria mais fácil com a colaboração das Forças Armadas.

"Ao longo de todos esses anos, os governos nunca deram ordens claras para que os militares apresentassem informações sobre o destino dos corpos", diz a procuradora. "As Forças Armadas alegam que não têm essas informações, mas isso não se sustenta. Acredito que essas informações existem, mas estão guardadas a sete chaves."

A questão das ossadas jogadas em valas comuns tampouco se esgota com os militantes de esquerda vitimados pela ditadura. Na Vala de Perus, por exemplo, as pesquisas indicaram que a maior parte dos mortos é composta por pobres da periferia paulistana, cujas famílias também merecem respostas.

Por casos como esse, existe a defesa de que a Comissão de Mortos e Desaparecidos possa ampliar o seu escopo.

"A comissão poderia cumprir um papel muito importante ao ampliar a noção de quem foram as vítimas da ditadura", diz o historiador Lucas Pedretti, da Coalizão por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia.

"Ela não se debruçou sobre as violações aos povos indígenas, aos camponeses ou às vítimas dos esquadrões da morte nas periferias urbanas."

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