Descrição de chapéu Junho, 13-23

Professora presa e condenada por atos diz que 'junho de 2013 é história ainda em curso'

Camila Jourdan, da Uerj, afirma que manifestantes de esquerda foram criminalizados, abrindo espaço para ascensão da direita

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Rio de Janeiro

Condenada em primeira instância sob acusação de planejar manifestações violentas na esteira das Jornadas de Junho, Camila Jourdan, 43, afirma que os protestos de 2013 fazem parte de "uma história que ainda está em curso" e refuta comparações com os ataques de bolsonaristas às sedes dos três Poderes em 8 de janeiro deste ano.

Professora do Departamento de Filosofia da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), com mestrado e doutorado pela PUC-RJ e período de estudos em Sorbonne, na França, Camila aguarda julgamento de recurso e foi absolvida em outro processo sob a acusação de manter em casa artefatos explosivos.

Ela chegou a ficar 13 dias presa no complexo penitenciário de Bangu, na zona oeste carioca, em 2014, quando explodiram os atos contra a Copa do Mundo impulsionados pelos do ano anterior, quando os black blocs ganharam visibilidade.

Camila Jourdan, professora de filosofia na Uerj, foi uma das manifestantes condenadas sob acusação de organizar atos violentos no Rio de Janeiro
Camila Jourdan, professora de filosofia na Uerj, foi uma das manifestantes condenadas sob acusação de organizar atos violentos no Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress

Em entrevista por email à Folha, Camila insere os atos de junho de 2013 num contexto de revoltas que reúnem desde as manifestações em Seattle, durante encontro da OMC (Organização Mundial do Comércio) em 1999, até o movimento Vidas Negras Importam, iniciado em 2020 nos Estados Unidos.

"Listei estas revoltas para lembrar que se trata de uma história que ainda está em curso. É um evento histórico de recusa à representação."

A professora da Uerj afirma que a criminalização dos manifestantes permitiu a ascensão da direita, representada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Ela diz que a investigação pela qual foi condenada "cometeu uma série de ações ilegais" e defende o saldo das Jornadas de Junho. "Em termos de legado para as próximas gerações, foi melhor que 2013 tenha existido do que se não tivesse."

Por que as manifestações de junho de 2013 tomaram aquelas proporções? O interessante nas revoltas é que elas não respondem a uma relação de causalidade simples. São imprevisíveis.

Tento ler 2013 na chave do "acontecimento" político. Os "acontecimentos" criam suas próprias condições, pois criam sentidos, abrem campos de possibilidades que não estavam dados. O mesmo é verdade de outras revoltas contrassistêmicas recentes como a revolta de Seattle (1999), Que se vayam todos, na Argentina (2001), Grécia (2008), Occupy Wall Street (2011), Chile (2019/2020), Vidas Negras Importam nos EUA (2020) e outras.

Todas tinham como características básicas organização horizontal, recusa às formas tradicionais da representação política, busca pela participação política direta em assembleias e ocupações, rechaço aos sindicatos e partidos políticos, revalorização de elementos do anarquismo e do autonomismo etc.

Listei estas revoltas para lembrar que se trata de uma história que ainda está em curso. É um evento histórico de recusa à representação.

Ainda que não responda a uma causalidade simples, 2013 mantém condicionamentos. Estava em curso um aprofundamento do projeto excludente de cidade, por meio da proximidade dos megaeventos. A própria pauta das passagens tem este sentido, que diz respeito ao direito à cidade. A repressão policial gerou ainda mais revolta por parte da população.

Como avalia a multiplicidade de pautas? Há quem ache uma fraqueza dos movimentos contrassistêmicos, pois não teriam foco. Considero sua principal força. Elas expressam a multiplicidade de uma multidão irrepresentável, e sua impossibilidade de receber uma resposta simples, de ser cooptável. Era toda essa vida sem vida do capital que estava sendo recusada.

Nunca foi por 20 centavos, não cansamos de repetir. Mas, mesmo múltiplas, tratavam-se de pautas historicamente associadas à esquerda.

Havia cartazes falando contra a corrupção, que pode ser dita uma pauta vazia ideologicamente, ou mesmo pedindo intervenção militar. Mas, no período 2013/2014, estas pessoas eram pouquíssimas e perderam a disputa pelo movimento.

A ascensão da direita foi apenas possível após a criminalização da esquerda que estava nas ruas, notadamente dos anarquistas e das táticas de autodefesa. Somente em 2015/2016 vimos surgir um perfil muito diverso de manifestantes pedindo o impeachment da Dilma.

Parte dos analistas avalia que a direita obteve mais proveitos políticos das manifestações. Foi preciso antes que aquilo que não era cooptável, aproveitável na disputa eleitoral, fosse perseguido, tirado de cena.

A direita não poderia obter proveitos daquelas manifestações porque elas eram contrárias aos seus interesses. Para que a direita obtivesse algum proveito foi preciso, antes, que elas fossem criminalizadas.

Só após isso, com a ajuda da esquerda institucional e dos poderes midiáticos, foi possível então que a direita se aproveitasse, passando a ocupar o lugar do que chamo de "fake do antissistêmico", que a chamada alt-right adota para crescer na crise da representação.

Se pensamos apenas em termos imediatos, certamente a reação institucional, os de cima, saíram ganhando. Mas se pensamos numa noção estendida de política, nós sofremos ataques porque nos fortalecemos.

A vida é curta, e a luta é longa. O que aprendemos com 2013, os ensinamentos e experimentações que este nos legou seguem vivos. Tratou-se de um movimento que conseguiu arrancar uma série de reivindicações dos governos: a Aldeia Maracanã não foi removida até hoje, estudantes secundaristas espalharam comunas pelas escolas três anos depois e barraram o fechamento delas, uma série de espaços autônomos foram criados e táticas de autodefesa foram propagadas.

Em termos de legado para as próximas gerações, foi melhor que 2013 tenha existido do que se não tivesse.

Há vínculos entre junho de 2013 e o impeachment de Dilma Rousseff? Certamente não é uma vinculação direta. Na medida em que o governo da época criminalizou e perseguiu os elementos majoritariamente à esquerda que ocupavam as ruas naquele momento, deixou o espaço livre para as forças de direita que ajudaram a derrubá-lo.

É nesta medida que o governo Dilma "cava sua própria cova" que já vinha cavando pelas alianças que fez e pela instauração das medidas de exceção que depois se voltaram contra eles mesmos. Por outro lado, culpa aqueles que criminalizou.

Quem se beneficia com uma abordagem como esta são justamente aqueles que querem impedir qualquer levante popular no porvir. Pensar assim é dizer: "É melhor não se revoltar, se não piora", argumento perfeito contra a possibilidade de qualquer rebelião. Ler 2013 nesta chave não atenta primordialmente contra nosso passado. Empenha qualquer novo futuro possível.

E com a ascensão de Jair Bolsonaro? Quero olhar o levante por ele mesmo, não pelo ponto de vista das disputas pela institucionalidade. Quem ganhou a Presidência na França após maio de 1968 não se compara ao fenômeno maio de 68. Alguém diria, por isso, que maio de 68 na França não deveria ter existido? Ou que a eleição posterior é seu significado mais profundo?

Isso é obviamente uma bobagem. Em certo sentido, não é esta troca de cargos que me interessa. O significado das insurreições não morre com cada uma delas, pois trata-se de uma história longa, que se estende no tempo, perpassa fronteiras e vão muito além de disputas eleitorais.

O bolsonarismo é um movimento de direita que ultrapassa o Jair, justamente porque é a encarnação desta contrarrebelião preventiva, que se segue claramente após 2013. Ela cumpre um papel de silenciamento dos oprimidos, na medida em que serve como o "cão guarda" dos Poderes constituídos.

Uma das marcas das manifestações foram as chamadas "ações diretas", consideradas pela Justiça vandalismo. Como vê a utilização dessa tática nos atos? Ação direta não tem qualquer relação com "atos de vandalismo", como foi repetido à exaustão pela mídia. Toda vez que você não espera o Estado para promover uma ação política, você executa uma ação direta: ocupar uma casa abandonada para fazer a propriedade privada ter um fim social, ocupar uma fábrica e autogerir este local de trabalho.

Sempre foram as ações diretas e desobediência civil que promoveram as modificações sociais. São os motores históricos das conquistas populares. É perigoso transformar a potência dos movimentos sociais em símbolo de sua fraqueza por meio da criminalização.

E é exatamente isso que a narrativa dominante sobre 2013 opera quando diz "as pessoas saíram das ruas por causa das ações de vandalismo".

Que vandalismo? Desde quando quebrar uma vidraça em um ato político é um vandalismo? Desde quando queimar um símbolo de opressão não é uma ação de destituição ativa daquilo que é investido como eternização de uma vitória numa guerra?

O movimento golpista de 8 de janeiro deste ano utilizou táticas semelhantes às vistas em junho de 2013, como o uso de acampamentos (neste caso, em frente a quartéis) e o ataque a prédios públicos. Quais são os paralelos e as diferenças? As táticas da extrema direita não têm nada de ação direta. O que eles pedem? Golpe, mais Estado, nacionalismo, militarismo, intervenção militar. Em uma palavra: fascismo.

E o que eles fazem? Atacam símbolos nacionais e símbolos do Estado?! Isso faz algum sentido? Isso não é ação direta nenhuma. É um "fake do contrassistêmico". É espetacularização da revolta, inversão de signos. O que eles querem não tem nenhuma relação com o que eles fazem, é um signo descolado de seu sentido.

Uma maneira de apontar isso é por meio do apoio policial que eles receberam. As forças de segurança não apenas facilitaram as ações, foram cúmplices. Compare com a repressão que sofremos em 2013 e em outras revoltas semelhantes.

A sra. foi condenada por supostamente ter planejado atos violentos. Qual sua avaliação sobre o processo? Ele tem uma série de acusações fabricadas, algumas já desqualificadas juridicamente, já que a própria investigação cometeu uma série de ações ilegais. Recentemente fui absolvida de uma parte das acusações que respondia. Uma outra parte do processo segue aguardando julgamento na segunda instância, onde, acredito, será finalmente desmontado.

Mas ele já cumpriu a função de punição preventiva, esvaziamento das ruas, e manter as pessoas com medo, que era seu principal fim.

Camila Jourdan, em 2014, após passar 13 dias detida por manifestação na Copa do Mundo e ser denunciada pelo Ministério Público - Daniel Marenco - 26.jul.2014/Folhapress

CAMILA JOURDAN, 43

Professora do Departamento de Filosofia da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Possui doutorado (2009) e mestrado (2005) em Filosofia pela PUC-Rio, com período sanduíche na Universidade Paris I, Sorbonne. Escreveu o livro "2013: Memórias e Resistências" (Circuito, 2018). Foi condenada em primeira instância, com outros 22 ativistas, a sete anos de prisão sob acusação de associação criminosa e corrupção de menores ao supostamente planejar atos violentos em manifestações. Ela recorre da sentença em liberdade, após ficar presa por 13 dias.

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