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Quero defender democracia com Bíblia debaixo do braço, diz deputado pastor

Eleito para a Câmara pelo PSOL, Henrique Vieira lança livro e chora ao falar sobre relação da esquerda com crentes

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São Paulo

Falemos de Jesus Cristo: a imagem que temos de um homem branco de olhos claros não tem lastro histórico nem social, diz o pastor e deputado Henrique Vieira (PSOL-RJ).

O messias cristão, segundo o fundador da Igreja Batista do Caminho, hoje "assume a condição negra", parte de um povo oprimido como o foi um judeu na Palestina no século 1.

Autor de "O Jesus Negro", livro recém-lançado pela Planeta, Vieira defende que o campo progressista não aliene as igrejas, sob risco de jogá-las no colo do fundamentalismo religioso e do bolsonarismo.

Não existe "projeto popular no Brasil com capacidade de vitória tratando a fé cristã como inimiga", diz. "Quero estar no campo da esquerda, quero defender a democracia, e vai ser com a Bíblia embaixo do braço e o joelho no chão."

O deputado Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) na Câmara dos Deputados
O deputado Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) na Câmara dos Deputados - Pedro Ladeira/Folhapress

"Se Jesus de Nazaré foi judeu na Palestina do século 1, então ele é negro no Brasil do século 21." Essa sentença é uma boa síntese do seu livro. Pode explicá-la? O judeu fazia parte de um povo explorado pelo Império Romano. No Brasil, após quase quatro séculos de escravidão, uma abolição inconclusiva... O Cristo insurrecto continua aparecendo no rosto do oprimido e assume a condição negra.

A Bíblia fala algo sobre a aparência de Jesus? Não há referência a características objetivas. O que sabemos pela historiografia é que um homem judeu na Palestina não era branco. O Jesus branco é uma produção histórica conveniente para explicar o processo de colonização e escravização. Seria um constrangimento para essa moralidade eurocêntrica um Jesus da cor do escravizado.

Existem representações antigas de Jesus que fogem desse eurocentrismo? O cristianismo hegemônico tem esse traço colonizador, mas existem interpretações múltiplas. Na África, a imagem de Cristo é preta. Muitas imagens da própria Nossa Senhora Aparecida, dialogando com a cultura católica, são pretas.

O sr. denuncia a violência contra religiões de matriz africana. Por que tantos evangélicos as demonizam? Se você pega o protestantismo brasileiro, parte vem do sul escravocrata dos EUA. É uma teologia que nasce de onde se tratava o negro como sub-humano. Muita gente pode achar que o racismo é uma questão apenas moral. 'Não sou racista, está dizendo que sou um mau-caráter?' O racismo é silencioso. Muitas vezes as pessoas nem se dão conta de que estão reproduzindo uma teologia racista. Vou dar meu exemplo, posso?

Por favor. Tinha 16 anos, um garoto maneiro, apaixonado por Jesus, da paz. Se passasse na frente de uma igreja católica, eu só seguia. Se passasse por uma oferenda, sentia medo, dizia no meu coração: tá repreendido em nome de Jesus. Eu não fazia parte de um grupo nazista, não era um adolescente perverso, mas fui formado numa teologia que me fez achar que aquela experiência religiosa era contra mim. Com religiões de matriz afro, tudo ganha essa caracterização de exótico, primitivo, do mal.

Ora, se você acredita que o principal mandamento é amar a Deus e ao próximo, vamos colocar o dedo na ferida. Para usar uma expressão [evangélica]: um quebrantamento de coração, para que nossa fé não seja instrumento de violência ou indiferença.

A média evangélica é negra, feminina e pobre, eleitorado a princípio inclinado a Lula. Por que essas minorias, nas igrejas, foram seduzidas pelo bolsonarismo? Existe uma aproximação orgânica entre extrema direita e fundamentalismo religioso. Ela tem poder político, midiático. Sério mesmo, nunca pode desconsiderar isso. Se ligar a TV agora, vai ver programas evangélicos com a mesma lógica fundamentalista. Óbvio que vai influenciar o comportamento de massa, e pagamos o preço por isso. Agora, tem milhares de pastores e pastoras que não assinam embaixo dessa fascistização da fé.

A esquerda compreende os evangélicos? Existe a esquerda que não quer compreender, e tenho tranquilidade para reconhecer isso e criticar. Mas existe outra disposta a dialogar.

Na eleição de 2022, qual dessas esquerdas prevaleceu? Acredito que foi a parte majoritária que compreende que as religiões podem fortalecer o Estado laico. Aliás, não tem projeto popular possível no Brasil desconsiderando o elemento religioso. E por uma razão simples: parte significativa do povo explorado e trabalhador tem fé.

Pastores como Silas Malafaia dizem que a liderança progressista é inexpressiva nos templos, que vocês não falam pela massa evangélica. Não é correto fazer apenas comparação quantitativa. Eles têm impérios, nós temos nossas vozes. A maior parte do eleitorado evangélico votou no Bolsonaro? Menor dúvida disso. Mas foi o que, 90% [dos crentes pró-Bolsonaro]? Não, pesquisas indicavam algo em torno de 70%, 60%. Então beleza, vamos colocar em números. Temos entre 30% a 40% que votaram em Lula. É minoria? É. Acachapante? De forma alguma. Se imaginarmos um Maracanã, tem torcida dos dois lados.

Mas não quero reproduzir essa polarização em termos numéricos. Nem todo eleitor de Bolsonaro é um fascista. Tenho plena convicção disso. Não quero criar clima de guerra. Quem faz isso é a extrema direita. Muitos [cristãos de esquerda] foram expulsos da igreja. Agora, nessa massa conservadora há gradações. Não é todo mundo que está com teologia de Malafaia ou Edir Macedo na cabeça. Mesmo com o poder que eles têm, não hegemonizaram o campo e perderam a eleição.

O sr. disse, antes mesmo de assumir o mandato, que não participaria da bancada evangélica, que tem membros à esquerda, como Benedita da Silva (PT). Por quê? Respeito quem faz opção por participar, não vou estigmatizar. Mas não me sentiria à vontade. A bancada me parece um lobby religioso. Prefiro a linha de defesa ao Estado laico. Outro elemento é teológico: minha fé não se realiza defendendo a igreja, e sim quando defendo trabalhadores, indígenas, quilombolas.

O sr. é um defensor de causas identitárias, de baixíssima tração nas igrejas. É possível reverter essa má vontade? Trabalho por isso. É meu caminho, minha esperança e minha profecia. Chamo de causas relacionadas à dignidade humana e em defesa da vida.

A atual política de drogas, por exemplo, não reduz o uso autodestrutivo e tem como consequência uma lógica que mata de forma industrial a juventude periférica.

A legislação atual diminuiu o número de abortos? Não. Muitas mulheres sem assistência fazem na clandestinidade e acabam morrendo. Descriminalizar não é romantizar, é não tratar essa mulher como criminosa. Quando chegar uma mulher contando que fez um aborto, o irmão vai acolher, não vai entregar para uma delegacia. E se ele fizer isso, ele concorda comigo.

Quero uma fé capaz de chorar com quem está chorando, de perdoar quem está errando, que saiba se arrepender e pedir perdão. Porque senão fica salvando texto bíblico isolado e matando gente.

Parte da esquerda medievaliza os crentes. Como conversar com essa visão de mundo? Vou ser cuidadoso: respeito profundamente a dor e o ressentimento de pessoas maltratadas pelo fundamentalismo religioso. Não quero passar pano para ele.

Ao mesmo tempo, é uma religião experimentada pela maioria do povo. Preciso dizer para a esquerda que não tem projeto popular no Brasil com capacidade de vitória tratando a fé cristã como inimiga. É preciso separar o joio do trigo, criar conexão com a fé que habita o coração da empregada, do porteiro, do motorista de app, do gari. [Vieira chora]

Quando eu era criança, cantava com minha mãe três palavrinhas: "Deus é amor". Não vou abrir mão do Evangelho. Quero estar no campo da esquerda, quero defender a democracia, e vai ser com a Bíblia embaixo do braço e o joelho no chão.

O Jesus Negro - O Grito Antirracista da Bíblia

  • Preço R$ 46,90 (144 págs.); ebook: R$ 29,90
  • Autoria Henrique Vieira
  • Editora Planeta

Raio-X | Henrique Vieira, 36

É pastor da Igreja Batista do Caminho e está em seu primeiro mandato como deputado federal, pelo PSOL-RJ. Antes disso, foi vereador por Niterói, cidade onde nasceu, entre 2013 e 2016. Interpretou um frei em "Marighella", filme de Wagner Moura, e lança em junho seu quinto livro, "O Jesus Negro".

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