Descrição de chapéu Folhajus forças armadas

Investigação militar teve tentativa assombrosa de culpar vítima de assédio, aponta ministro

Vítimas relatam apurações mal conduzidas; juíza diz notar avanço em atenção com tema

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Rio de Janeiro

Decisões judiciais e uma pesquisa mostram vícios, machismo e desconfiança das vítimas nas investigações internas das Forças Armadas sobre assédio sexual contra militares mulheres.

Sentenças relatam casos de repreensão do superior após queixa pública sobre o constrangimento causado pelo possível assédio até apurações sobre o comportamento da denunciante dentro e fora do quartel.

Farda de ex-militar vítima de assédio sexual no Exército - Isabella Campos/Folhapress

Foi o que ocorreu com Marta (nome fictício), sargento temporária num batalhão do Nordeste.

Ela denunciou o suposto assédio de um tenente que, de acordo com seu relato, chegou a deixar marcas em seu abdômen. Por falta de provas, a acusação acabou não só arquivada, mas também invertida. Marta foi acusada pelo Ministério Público Militar por denunciação caluniosa contra o oficial.

Ao arquivar a denúncia contra ela, o ministro Artur Vidigal de Oliveira, do STM (Superior Tribunal Militar), apontou que a sindicância interna passou a apurar fatos que desabonassem a denunciante, questionando testemunhas sobre seu comportamento no quartel.

"A intenção que se extrai após a leitura atenta das perguntas elaboradas, tanto na sindicância quanto no IPM [inquérito policial militar], tais como ‘se sabe se a graduada se relacionava com militares do Batalhão’ ou ‘se conhece conduta que desabone a sargento’, é de uma tentativa assombrosa de se culpar a vítima do assédio por ela sofrido", afirma o voto do ministro.

Marta contou à Folha que só fez a denúncia após colegas notarem sua mudança de comportamento. "Fiquei com medo porque ele era oficial de carreira e eu era recém-chegada militar temporária."

Até hoje, a mãe e amigos próximos fora da caserna não sabem o que ocorreu com ela no Exército. Mas Marta diz que sua experiência serviu de alerta para colegas militares.

"Todas [as amigas militares] diziam, depois que viram o que eu passei, que nenhuma, se passasse pela mesma coisa, faria o que eu fiz. Porque todo mundo virou as costas. Elas viam o que eu estava passando. Viram quanto eu chorei", conta ela.

"A primeira pergunta que fazem sempre: ‘Mas por que você não falou na hora? Por que você não foi fazer um exame de corpo delito já que você ficou marcada?’ Sempre são os porquês. Mas ninguém quer saber o que lhe afetou naquele momento, como você ficou, se você ficou bem, se você ficou mal. É sempre: ‘Ah, por que você não foi?’ Não fiz, por inexperiência, por não saber o que tinha pela frente."

Uma sentença do Rio Grande do Sul também relata como uma sargento foi repreendida por seu superior ao se exaltar com a abordagem de um suboficial da Aeronáutica. Ela repeliu com veemência pedido de reunião a sós após ter sido assediada três vezes antes. O militar acabou condenado.

Exército, Marinha e Aeronáutica afirmaram em notas repudiar a prática de assédio e disseram apurar qualquer conduta criminosa reportada.

Pesquisa realizada em 2020 pelos juízes Mariana Aquino e Rodrigo Foureaux com mulheres integrantes de forças de segurança (incluindo também PM, Guarda Municipal e bombeiros, entre outros) mostra que 83% das que declararam ter sofrido assédio sexual no trabalho não denunciaram o caso.

As principais razões foram a descrença na apuração (13,3%), o medo de represálias (12,7%) e da exposição (12,5%).

Segundo os dados da pesquisa, 163 militares das Forças Armadas declararam ter sofrido assédio, número superior ao de investigações abertas nos últimos sete anos. Dentre elas, 87% disseram que o assédio partiu de um superior.

Os supostos assédios contra Tamires (nome fictício), sargento temporária de um depósito do Exército, e Marta foram investigados antes de 2020.

Aquino, que tem sido convidada a dar palestras em unidades militares após a publicação da pesquisa, vê uma mudança de cenário nas apurações.

"Tenho notado essa preocupação, porque senão eles não iam querer que uma juíza fosse até uma organização militar falar sobre esses crimes. A palestra é pesada. Eu trago várias jurisprudências, falo sobre os casos. A gente tem notado também a procura das militares para falar porque sabe que agora tem um canal de comunicação", afirmou a magistrada.

A procuradora Najla Nassif Palma, do Ministério Público Militar, afirma que inquéritos mal conduzidos não são mais comuns.

"Eles têm sido orientados a não fazer isso, mas já houve investigações em que não havia esse cuidado, essa técnica. Houve casos em que a gente mandou até trocar o encarregado", disse ela.

As investigações, porém, não são garantia de condenações e punições. O crime de assédio tem requisitos para que seja tipificado, como o uso da superioridade hierárquica para obter "vantagem sexual".

Em alguns casos, magistrados absolvem os acusados ao apontar que o crime específico não se configurou, embora deva ser analisado sob o ponto de vista disciplinar.

Foi, por exemplo, o caso de um tenente lotado em Jataí (GO), acusado por quatro militares de fazer repetidamente comentários de cunho sexual e dar abraços constrangedores. Ele foi absolvido.

"Nenhuma das ofendidas narrou conduta do acusado de promover o constrangimento com o fito de obter 'favores ou vantagens sexuais'. Os comentários feitos, embora deselegantes e não recomendados em um local de trabalho, mormente o da caserna, não configuraram o crime de assédio sexual, especialmente porque nenhuma vítima foi perseguida profissionalmente", afirmou o juiz Frederico Veras.

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