Pesquisador da ditadura no Brasil cobra dos EUA liberação de arquivos secretos

Americano James Green inicia campanha para que seu país faça gesto à democracia brasileira com envio de material histórico

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São Paulo

O historiador americano James Green, um dos principais pesquisadores sobre o Brasil nos Estados Unidos, participou dos esforços para que o governo Joe Biden ajudasse a evitar uma quebra no regime democrático brasileiro em 2022 e aplaudiu tudo o que foi feito. Agora, ele quer um gesto maior.

O brasilianista afirma em entrevista à Folha que prepara, em conjunto com ativistas e organizações nacionais, um pedido para que os EUA liberem cerca de mil arquivos secretos que podem revelar a atuação do país no golpe de 1964 e na ditadura militar que perdurou por 21 anos.

"Seria um sinal de boas intenções, no contexto de 60 anos do golpe militar e dos 200 anos do reconhecimento da independência do Brasil pelos EUA, de mostrarem que realmente acreditam na democracia", diz, completando que os dois países convivem com o risco de volta da ultradireita ao poder.

O pesquisador americano James Green em São Paulo, onde concedeu entrevista à Folha - Bruno Santos/Folhapress

Progressista, Green é presidente do conselho diretor do WBO (Washington Brazil Office), uma das organizações que externaram às autoridades americanas preocupação com as investidas golpistas do então presidente Jair Bolsonaro (PL) e sua ameaça de não respeitar os resultados.

"É muito perigoso o que ele representa para o Brasil", diz o professor da Universidade Brown.

Green também critica Lula (PT) —candidato que apoiou, como gosta de frisar, em caráter pessoal— por relativizar ditaduras e estreitar laços com líderes autoritários, como o venezuelano Nicolás Maduro.

Visitante assíduo do Brasil, o docente morou no país na juventude e militou contra o regime militar. Também é conhecido pelo ativismo na área LGBTQIA+, tema de alguns de seus livros. Ele conversou com a reportagem durante sua passagem mais recente por São Paulo, na semana passada.

Os EUA e 2022

Green diz que antes das eleições foi procurado por movimentos sociais brasileiros que pediam apoio para angariar solidariedade internacional. Ele ajudou a articular encontros com membros do Departamento de Estado dos EUA e do Congresso, num trabalho que descreve como independente e apartidário.

"As reuniões e cartas que fizemos eram todas no sentido de reafirmar: acreditamos na democracia brasileira e no processo eleitoral brasileiro, acreditamos na possibilidade de eleições livres e queremos que o governo americano reconheça imediatamente os resultados", afirma.

Para Green, o papel dos EUA e de outros atores internacionais foi fundamental, mas o determinante para o desfecho positivo foi a mobilização local.

"Como os americanos tiveram um papel horrível em 1964, nós achávamos muito importante tentar evitar um novo erro nesse sentido. Acho que isso [errarem de novo] não era possível com Biden. Se fosse [Donald] Trump na Casa Branca, seria outro cenário —e acho que teria sido um golpe bem-sucedido."

Os EUA e 1964

Criador do projeto Abrindo os Arquivos, que coletou e disponibilizou mais de 60 mil papéis produzidos pelos americanos no contexto do golpe e da ditadura, o pesquisador calcula que cerca de mil arquivos estejam ainda sob sigilo parcial ou completo.

"Nossa campanha é para pedir ao governo Biden, como indicação de boas relações entre os dois países, que libere essa documentação. E esperamos que ele faça isso. Para quem estuda esse período, são importantes esses detalhes, para completar o que sabemos."

Um dos materiais visados são os depoimentos de autoridades americanas em uma investigação dos anos 1970 sobre a relação entre o financiamento de setores da polícia brasileira e casos de repressão e tortura.

A mobilização começará com uma carta aberta a Biden, que já foi assinada por 17 organizações, entre elas a Comissão Arns e o Instituto Vladimir Herzog, e sete acadêmicos, "para ver se há um gesto" dos EUA.

Green cita um precedente animador. Após pressões da sociedade chilena, os EUA liberaram 11 mil documentos em 2000 mostrando seu "envolvimento direto e nefasto" no golpe de 1973 no Chile.

Interferência

Green rebate as afirmações de que a atuação dos EUA em 2022 tenha sido um caso de interferência estrangeira. A tese foi difundida por Bolsonaro há alguns dias, após reportagem do jornal Financial Times relatar como o governo Biden pressionou políticos e militares brasileiros para respeitaram a eleição.

"Que interferência? Isso é mais uma fake news dele [Bolsonaro]", diz o pesquisador. "Nossa preocupação era deixar os brasileiros decidirem e garantir a democracia no país", argumenta.

"Os Estados Unidos não disseram 'apoiamos Lula' ou 'Bolsonaro, você tem que sair'. Disseram: 'Acreditamos nas urnas eletrônicas, na possibilidade de eleições limpas e na democracia brasileira, e estamos contra ações das Forças Armadas para interferir no processo eleitoral'."

8/1 e 6/1

Green diz que os ataques de 8 de janeiro de 2023 em Brasília e a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 são igualmente tentativas malsucedidas de golpe. No caso brasileiro, acredita ele, era uma tentativa de "medir a reação da sociedade" que fracassou porque as Forças Armadas estavam divididas.

"Não foi uma coisa espontânea, como não foi o 8 de janeiro. Foi tudo planejado."

Para o pesquisador, a predominância conservadora no Congresso dificulta uma apuração adequada e honesta dos fatos em Brasília, mas o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, tem sido eficiente ao identificar e processar os envolvidos.

Lula e ditaduras

Questionado sobre a aproximação de Lula com líderes autoritários como Maduro, Green diz que "o Brasil tem que refletir muito sobre isso, porque, se um país está defendendo a democracia doméstica, é um pouco complicado apoiar governos que não são democráticos".

"Entendo o argumento de que os americanos são hipócritas, que às vezes apoiam regimes democráticos e às vezes, por interesses econômicos, apoiam regimes antidemocráticos. Mas acho que o Brasil, se quer retomar um poder internacional com Lula, precisa demonstrar consistência."

Green cita Rússia, China e Nicarágua depois de falar que alguns dos regimes aos quais Lula acena "talvez sejam até piores do que o pior momento da ditadura militar aqui" em relação a repressão e desaparecimento de opositores. "A esquerda tem que enfrentar essa questão."

Bolsonaro e nostalgia

O professor diz que o Brasil tem o imenso desafio de esclarecer o que foi a ditadura militar, diante da revisão histórica proposta por Bolsonaro e apoiadores.

"Há setores da sociedade nos EUA e no Brasil que não acreditam na democracia. No caso brasileiro, eles têm uma memória da ditadura com nostalgia, como um momento que era melhor, que tinha ordem. Não têm noção do que realmente foi."

"Não é uma questão de virar a página, é ler a página antes de virá-la. Muitas pessoas não leram ainda a página sobre o que foi a ditadura militar", afirma Green, que associa Bolsonaro à promoção de "valores antidemocráticos, reacionários, até fascistas e neonazistas".


RAIO-X | James Naylor Green, 72

Americano, é professor de história latino-americana na Universidade Brown e um dos mais importantes brasilianistas nos Estados Unidos. Morou no Brasil de 1976 a 1981, período em que militou contra o regime militar e em defesa dos direitos LGBTQIA+. Escreveu, entre outros, os livros "Além do Carnaval", "Apesar de Vocês" e "Revolucionário e Gay: a Extraordinária Vida de Herbert Daniel". Preside o conselho diretor do WBO (Washington Brazil Office), think tank brasileiro e apartidário sediado nos EUA

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