Promotora negra fala em missão ancestral e defende Justiça inclusiva e 'de olhos abertos'

Lívia Sant'Anna Vaz atua no Ministério Público da Bahia há 19 anos; seu nome tem circulado em listas de indicações para vaga no STF

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São Paulo e Salvador

A promotora de Justiça Lívia Sant'Anna Vaz se ergue da cadeira e pega na estante um exemplar do seu primeiro livro. Na capa, há a imagem de uma divindade negra segurando uma balança em uma mão e uma espada na outra.

O livro é "A Justiça É uma Mulher Negra", e a ilustração remete a Oyá, também conhecida como Iansã, senhora dos ventos e das tempestades no candomblé. Mas ao contrário da deusa Têmis, figura da mitologia grega de que representa a Justiça, a orixá está de olhos abertos.

"Nos ensinaram que a Justiça é uma mulher branca de olhos vendados. [...] Eu entendo que uma Justiça de olhos fechados só tem a capacidade de manter as coisas como estão, e, como estão não são justas e democráticas", afirma a promotora em entrevista à Folha.

Mulher negra posa para foto séria e com os braços cruzados. Ao fundo se vê prédios.
Lívia Sant'Anna Vaz, promotora de justiça do Ministério Público da Bahia - Taba Benedicto/Divulgação

Essa visão de Justiça guia a promotora Lívia Sant'Anna Vaz. Ela atua há 19 anos no Ministério Público do Estado da Bahia, onde coordena o Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação.

Desde o início do ano, seu nome tem circulado em listas de mulheres negras aptas a ocupar uma cadeira de ministra no STF (Supremo Tribunal Federal). Nas próximas semanas, o presidente Lula (PT) deve escolher o nome que vai ocupar a cadeira que ficará vaga com a aposentadoria da ministra Rosa Weber.

Com 43 anos, Lívia foi a primeira da família a seguir a carreira jurídica. Ela faz questão de mencionar isso por ser comum a herança familiar na área do direito. A primeira profissão que pensou seguir foi o jornalismo, e, de preferência, o televisivo. Mas seu pai a aconselhou cursar direito.

"Ele me devolveu com uma pergunta: se eu já tinha visto alguma jornalista negra na televisão. Naquela época, e, até hoje, não tem muitas. Tínhamos pouquíssimas referências. Eu acho que só a Glória Maria. Aquilo me assustou."

O pai lembrou Lívia das reuniões de família que a mãe costumava convocar para fazer reclamações. O irmão, tímido, não falava nada. A outra irmã chorava. Ela tinha outra reação: levantava o dedo em riste e rebatia ponto por ponto, saindo em defesa dos irmãos.

Mulheres no Direito

Folha apresenta perfis de figuras relevantes no mundo jurídico feminino nacional

  • 'Mulheres no Direito' é uma série da Folha que reúne perfis de figuras relevantes do mundo jurídico nacional, sendo a profissional retratada parte de Judiciário, Ministério Público, academia ou advocacia.

  • Em quase 40 anos de redemocratização no Brasil, a cúpula da República contou com 66 homens e só 4 mulheres —uma proporção de 16,5 para 1— e continua até hoje comandada majoritariamente por representantes do sexo masculino.

  • O mundo jurídico é parte dessa falta de diversidade. Até hoje, apenas três mulheres fizeram parte da mais alta corte do país, o STF (Supremo Tribunal Federal). Uma delas é a ministra Rosa Weber, atual presidente do tribunal e que irá se aposentar no final de setembro. Nos bastidores, nenhuma mulher aparece como favorita para substituí-la, em indicação a ser feita pelo presidente Lula (PT) e depois aprovada pelo Senado.

Começou a cursar direito em 1998 na UFBA (Universidade Federal da Bahia), onde foi contemporânea de membros de famílias influentes como o ex-prefeito de Salvador ACM Neto. Acompanhou de perto em 2001 os protestos estudantis que resultaram em repressão com bombas de gás lacrimogêneo e na invasão da faculdade de direito pela Polícia Militar.

Lívia chegou ao Ministério Público como estagiária e diz ter se apaixonado pela missão constitucional da instituição. Voltou como concursada e se tornou uma das poucas promotoras negras da Bahia, estado com a maioria da população negra, mas com prevalência de brancos nos principais espaços de poder.

"Eu me sinto cumprindo uma missão ancestral de transformar essas realidades, mas também de abrir caminhos para que outras mulheres negras possam acessá-los também", afirma.

Em quase duas décadas no Ministério Público, Lívia já atuou na esfera criminal, no júri, no meio ambiente, na infância e juventude, no eleitoral, no consumidor e coordenou um grupo de combate a organizações criminosas.

Há oito anos ela se dedica com exclusividade à promoção dos direitos humanos. Lívia já atuou em proteção a mulheres em situação de violência, com a população LGBTQIA+ e com o combate ao racismo e intolerância religiosa, além, da proteção das comunidades tradicionais e das cotas raciais.

Com formação cristã no colégio Marista, em Salvador, se aproximou das religiões de matriz africana a partir da atuação na Promotoria. Hoje, critica a dificuldade de escuta e articulação do sistema de Justiça com movimentos sociais, incluindo os terreiros de candomblé.

"As religiões de matriz africanas sofrem perseguição histórica do próprio Estado. Os terreiros se constituem de maneira tradicional, pela oralidade, em torno da família. Não são segmentos religiosos burocratizados. Com isso, deixam de acessar a imunidade tributária", afirma a promotora, que passou a se debruçar sobre aspectos do racismo religioso.

Lívia diz ter uma visão de Justiça que não se alinha ao punitivismo, a despeito da atuação como promotora. Critica os excessos da Operação Lava Jato e diz que estes resultaram em máculas na imagem do Ministério Público.

Também afirma que é preciso pensar em igualdade e refletir sobre a própria composição branca dos principais cargos do sistema de Justiça.

"Nós temos uma Justiça antidemocrática, porque ela não tem a cara do povo. Não sabe dos problemas do povo. Não conhece as pessoas as quais ela precisa servir, e, portanto, ela não consegue construir justiça efetivamente. Promover justiça e direitos humanos para poucos é privilégio, não é direito", afirma.

A promotora afirma que o país vive tempos de ódio à democracia e que tem se assustado com manifestações de ódio a mulheres, nordestinas, quilombolas, negros e pessoas de religiões de matrizes africanas.

Diz que o ódio não é apenas contra os grupos sociais vulnerabilizados, mas contra a democracia. "Não estou falando de perda de direitos, mas de privilégios de quem ainda tem o poder. Quem está no topo dessa pirâmide não quer perdê-lo", afirma.

Questionada sobre a crise na segurança pública da Bahia, estado administrado pelo governador Jerônimo Rodrigues (PT) que enfrenta uma guerra entre facções e registra alta letalidade policial, pensa e escolhe as palavras com cautela.

Diz que a violência não é um problema exclusivo da Bahia, reconhece o agravamento da crise e diz que o Estado precisa chegar nas comunidades de outra maneira que não seja só com a polícia.

Na semana passada, Lívia e outras duas mulheres negras do direito da Bahia foram recebidas, de maneira separada, por Jerônimo Rodrigues e pelo secretário estadual de Justiça, Felipe Freitas. O petista falou em inclusão e, nos bastidores, tem sinalizado defesa de uma negra e baiana no STF.

Sobre a inclusão de seu nome em listas de mulheres negras aptas a ocupar a vaga de Rosa Weber no STF, Lívia diz ver a indicação como um desafio. E afirma que essa é uma oportunidade que o presidente Lula tem para fazer história.

"A presença de uma mulher negra nesse espaço é para abrir caminhos e quebrar com o pacto da branquitude, da masculinidade e do racismo patriarcal nos espaços de poder", diz.

Em 2020, a baiana entrou para a lista das cem pessoas de descendência africana mais influentes do mundo. O título foi dado pela organização internacional Mais Influente Afrodescendente (MIPAD, na sigla em inglês).

Neste ano, Lívia publicou seu segundo livro, cujo título é "Cotas Raciais", da editora Jandaíra. A obra compõe a coleção Feminismos Plurais coordenada pela filósofa e colunista da Folha Djamila Ribeiro.


Raio X | Lívia Sant'Anna Vaz, 43

Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, na área de combate ao racismo e à intolerância religiosa. Coordena o grupo de combate ao racismo do Conselho Nacional do Ministério Público desde 2018. Possui mestrado em direito público pela UFBA e doutorado em ciências jurídico-políticas em Lisboa. É especialista em estudos afro-latino-americanos e caribenhos. É autora dos livros "A Justiça é uma Mulher Negra" e "Cotas Raciais", este da coleção Feminismos Plurais.

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