Vice na USP se divide em duas e defende teoria crítica do direito em bases feministas

Ana Elisa Bechara concilia pesquisa sobre questões de gênero com atuação no campo penal

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São Paulo

Aulas magnas estão entre as ocasiões mais solenes do mundo acadêmico, e a de 2022 tinha um peso extra, pois marcava a volta à vida presencial após dois anos de pandemia. Ana Elisa Bechara, encarregada da exposição, sabia a importância daquele momento.

Vice-diretora da Faculdade de Direito da USP, ela pediu licença para não tratar do campo penal, sua área de expertise, e sim de um tema que considerava mais urgente: o papel da universidade para a equidade de gênero no direito.

Argumentou que o sexismo não é simples desvio dentro do sistema jurídico, e sim um de seus elementos constitutivos; afirmou que o direito penal, em particular, deliberadamente reforça estereótipos responsáveis por aprofundar a violência contra as mulheres.

Defendeu a elaboração de "uma teoria crítica do direito, a partir de bases feministas", questionando por que o sujeito do ordenamento jurídico, pretensamente neutro, é sempre o homem branco heterossexual.

Ao final, grifou o recado: "Se ser feminista significa resistir às injustiças do regime político do gênero e ao poder patriarcal, então sou feminista. Se ser feminista implica recusar destinos para corpos e resistir a uma ordem de subalternização de vidas, então claro que sou feminista! Sejamos todas e todos feministas!".

A professora Ana Elisa Bechara, em sala da Faculdade de Direito da USP, onde leciona direito penal e é vice-diretora; ao fundo, cópia do decreto que criou os cursos jurídicos no Brasil, em 11 de agosto de 1827
A professora Ana Elisa Bechara, em sala da Faculdade de Direito da USP, onde leciona direito penal e é vice-diretora; ao fundo, cópia do decreto que criou os cursos jurídicos no Brasil, em 11 de agosto de 1827 - Bruno Santos/ Folhapress

A pesquisa sobre questões de gênero é mais ou menos recente na vida de Ana Elisa. Começou há cerca de dez anos, por influência de alunas da São Francisco –como é chamada a Faculdade de Direito da USP.

Quanto mais se embrenhou no assunto, mais percebeu a importância dele; quanto mais progrediu na academia, mais sentiu a necessidade de agir em nome das mulheres, que são 19% do corpo docente da faculdade, ou 9% se considerado apenas o nível mais alto da carreira.

Mulheres no Direito

Folha apresenta perfis de figuras relevantes no mundo jurídico feminino nacional

  • 'Mulheres no Direito' é uma série da Folha que reúne perfis de figuras relevantes do mundo jurídico nacional, sendo a profissional retratada parte de Judiciário, Ministério Público, academia ou advocacia.

  • Em quase 40 anos de redemocratização no Brasil, a cúpula da República contou com 66 homens e só 4 mulheres —uma proporção de 16,5 para 1— e continua até hoje comandada majoritariamente por representantes do sexo masculino.

  • O mundo jurídico é parte dessa falta de diversidade. Até hoje, apenas três mulheres fizeram parte da mais alta corte do país, o STF (Supremo Tribunal Federal). Uma delas é a ministra Rosa Weber, atual presidente do tribunal e que irá se aposentar no final de setembro. Nos bastidores, nenhuma mulher aparece como favorita para substituí-la, em indicação a ser feita pelo presidente Lula (PT) e depois aprovada pelo Senado.

Titular de direito penal desde 2017, escolhida num concurso do qual também participou Janaina Paschoal, ela tem papel de liderança em algumas transformações da faculdade. Uma delas foi a criação de um grupo de professoras que se encontram mensalmente para beber, dar risada, bater papo.

"Tem sido transformador", afirma Ana Elisa. "Soa ridículo, mas os homens estabelecem as suas redes de contato na vida social, no happy hour. As mulheres não costumam ter esse espaço."

Dessa aproximação resultaram iniciativas como a mudança do regimento da faculdade. Até outro dia, o período de licença-maternidade não era desconsiderado no cálculo de produtividade. Ou seja, professoras precisavam trabalhar em dobro para compensar o afastamento.

Ela própria experimentou uma versão dessa desigualdade. Formada em 1998, entrou no ano seguinte direto no doutorado e pouco depois engravidou.

"Não tive coragem de pedir a licença-maternidade. É um direito, deveria ser normal, mas fiquei com medo de parecer que eu queria um favor", relembra.

Ana Elisa seguiu em frente. Antes de começar a dar aulas na USP, em 2008, trabalhou em escritórios de ponta e atuou em alguns dos casos mais momentosos do país, tendo como clientes grandes empresários enrolados com a lei. Uma experiência quase oposta à que a havia levado para o direito penal.

Quando estudava na faculdade, entrou para o Departamento Jurídico XI de Agosto, que presta assessoria para populações carentes.

"Cuidando de ações penais, vi uma realidade diferente da que eu estudava na sala de aula. Aquilo me sensibilizou muito e me deu vontade de ir para essa área", diz Ana Elisa. Não só para tocar processos criminais, mas também refletir sobre o que estava por trás deles.

Sua especialidade dentro do direito é a dogmática penal, que, grosso modo, pode ser traduzida como teoria do crime: quais são os fatores que levam uma conduta a ser classificada como criminosa e qual o sentido de prever uma determinada pena para cada caso.

Sua linha originária de pesquisa inclui diversas críticas ao direito penal, que ela considera conservador, repressivo e manipulado politicamente. De sua perspectiva, mais vale investir na prevenção do que insistir no discurso punitivista, que ela define como demagógico.

Quando passou a pesquisar também questões de gênero, não teve dificuldade de manter o olhar crítico. Logo viu limites no uso do direito penal como resposta à violência contra mulheres, a despeito de avanços como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio.

Ele cita como exemplo o aborto, que não é considerado crime quando a gravidez decorre de estupro. Para ela, a explicação para essa exceção não está em uma atitude benevolente em relação à mulher, e sim em uma preocupação masculina: a defesa da honra do marido.

Daí a importância de haver mulheres no Supremo Tribunal Federal, diz ela. "É uma questão pragmática, para termos um direito menos discriminatório. Defendo a diversidade de forma geral, com uma mulher negra [na vaga que se abrirá com a aposentadoria de Rosa Weber]".

Pelo mesmo motivo, defende o aumento da presença feminina no corpo docente da faculdade e a reforma da formação acadêmica com o objetivo de tornar o ensino jurídico mais sensível às questões de gênero.

Ana Elisa valoriza uma universidade conectada à sociedade, razão pela qual celebra a realização dos atos de 11 de agosto de 2022 na São Francisco. Na ocasião, foram lidas duas cartas em defesa da democracia; Ana Elisa, ao lado de Eunice de Jesus Prudente, Maria Paula Dallari Bucci e Flávio Bierrenbach, ficou encarregada de ler uma delas.

Como vice-diretora, teve atuação destacada na organização do evento; como oradora, enfrentou uma saia justa ao ter que se descrever para ajudar pessoas com deficiências visuais. "Isso me afeta até hoje", diz. "Eu não sei o que sou. Precisar me definir me deixou perturbada."

Em cima do palco, ela disse: "Eu sou uma mulher morena, descendente de italianos, negros e índios". A categoria "morena", porém, não existe na classificação do IBGE.

Ela conta que, quando renovou o RG, anos atrás, a atendente, sem perguntar, escreveu "parda" no documento. Na infância, chegou a ser chamada de "mulatinha" e sofria preconceito quando saía com a mãe, uma mulher branca.

Ana Elisa Bechara, professora de direito penal e vice-diretora da Faculdade de Direito da USP
Ana Elisa Bechara, professora de direito penal e vice-diretora da Faculdade de Direito da USP - Bruno Santos/Folhapress

Se o passado recente a incomoda, o futuro a desafia. Hoje com 47 anos, ela pretende, em algum momento, deixar o regime de dedicação exclusiva para voltar a advogar. Mas talvez isso precise esperar que seu ciclo de gestora se encerre.

Na Faculdade de Direito, é comum que o vice-diretor venha a se tornar diretor no mandato seguinte. Foi o que aconteceu com Celso Campilongo, por exemplo, que comanda a São Francisco.

Cheio de elogios à colega, Campilongo diz que ainda é cedo para discutir sucessão, pois faltam dois anos de mandato, mas afirma que, se Ana Elisa quiser, será excepcional candidata.

"Desde sua criação, em 1827, a Faculdade de Direito teve apenas uma diretora. É muito pouco. Seria fantástico e simbólico que, no momento marcante de 11 de agosto de 2027, uma mulher estivesse à frente da São Francisco", diz ele. Na data, serão comemorados os 200 anos da criação dos cursos jurídicos no Brasil.


RAIO-X | ANA ELISA BECHARA, 47

É professora titular de direito penal da Faculdade de Direito da USP, onde é vice-diretora com mandato de 2022 a 2026. É docente da International Academic Network for the Abolition of Capital Punishment , na Espanha, membro da Red de Investigación Respuestas a la Corrupción asociada al Crimen Organizado, na Colômbia, e do grupo de pesquisa "Teoria e História do Direito", junto à Universidade de Lisboa.

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