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STF é do Brasil e deveria refletir isso, não o apoderamento das elites, diz professora

Maria da Glória Bonelli, sênior da UFSCar e referência sobre profissões jurídicas e gênero, afirma que pluralismo ajuda a legitimar corte

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São Paulo

Ampliar a presença de mulheres e pessoas negras na cúpula do Judiciário melhoraria as decisões e a legitimidade dessas instituições, diz Maria da Glória Bonelli.

Referência no estudo das profissões jurídicas sob a perspectiva de gênero no país, a professora sênior do Departamento de Sociologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) afirma em entrevista à Folha que é preciso debater qual é o Brasil representado na composição do Judiciário.

Maria da Gloria Bonelli, professora titular sênior do departamento de sociologia da Universidade Federal de São Carlos - Arquivo pessoal

Com a abertura da vaga da ministra Rosa Weber no STF (Supremo Tribunal Federal), Bonelli afirma que a declaração do presidente Lula (PT) de que o gênero e a cor não serão determinantes na indicação mostra falta de amadurecimento da compreensão sobre o que é uma democracia.

"Achar que pode botar um magistrado, um ministro para ocupar uma posição, que ele vai ser competente, justo e inclusivo, independentemente dele ser homem, mulher, branco, indígena, negro, etc, é uma visão que se naturaliza facilmente quando as pessoas estão confortavelmente sentadas em posições de poder."

"É um pouco difícil que um tribunal composto de pessoas semelhantes entre si seja visto por aquelas outras pessoas, que estão tão distantes desse universo, como parecidas", diz.

Gênero, cor e STF

No final de setembro, Lula afirmou que gênero e cor não serão mais critérios para a indicação de um nome ao STF. No primeiro semestre, o presidente escolheu seu advogado e amigo Cristiano Zanin para uma vaga, ignorando o pleito de movimentos pela indicação inédita à corte.

Para Bonelli, a declaração espelha as influências políticas que Lula tem sofrido de seu entorno, do PT e da base eleitoral. "Há uma disputa e também um movimento tentando demonstrar resiliência, enfatizando o significado dessa diversidade nos tribunais", diz.

A professora afirma que Lula é um presidente que vivenciou a experiência da perda da liberdade e que "deve entender muito bem como se sente a população brasileira ao olhar para a corte e não se ver representada".

"A maioria dos condenados no Brasil tem determinadas marcas no seu corpo racializado, de uma cor de epiderme preta, parda. [A composição do STF] fala mais da nossa sociedade. A gente precisava entender que a Suprema Corte é do país, é do Brasil, e deveria refletir isso. Ela não é um apoderamento das elites, do poder, embora ela seja também isso", afirma.

Exemplos no Supremo

Como exemplos da diferença de atuação, a professora cita o ex-ministro Joaquim Barbosa no julgamento sobre a constitucionalidade das cotas para negros nas universidades e a ex-ministra Rosa Weber ao pautar no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) uma ação afirmativa para impulsionar a progressão de mulheres, que acabou aprovada em setembro.

"Lógico que a Rosa Weber influenciou botando na pauta", diz, citando a posição firme da ministra nas negociações pela aprovação da norma.

No caso de Barbosa, ela lembra que o ministro Gilmar Mendes afirmou naquela ocasião que mudou de posição por influência do voto do ministro.

"Talvez por a gente ter exemplos de que há possibilidades efetivas de mudança por esse caminho é que haja tanta resistência. E essas resistências influenciam o presidente e também composições e alianças que estão feitas em torno disso. Há uma luta política em torno dessa agenda."

Promoção de juízes

Dados do relatório Justiça em Números, do CNJ, referentes a 2022 apontam que as mulheres são 38% dos mais de 18 mil magistrados do país. Enquanto no primeiro grau elas chegam a 40%, na segunda instância o percentual fica em 25%.

"Nunca houve no Brasil uma política de ação afirmativa em relação ao ingresso das mulheres nessas carreiras, que já estavam constituídas com formas de progressão decididas quando elas ingressaram", diz Bonelli.

A professora destaca que as normas de ascensão profissional foram construídas em um contexto de pessoas muito semelhantes em termos de origem social, raça e gênero.

"Muitas delas foram mais fáceis ou menos difíceis de serem percorridas pelos homens. Há vários estudos que mostram que o casamento impulsiona a progressão deles e torna mais difícil a mobilidade espacial das mulheres."

Bonelli cita como exemplo relatos que já ouviu de magistradas que deixaram a promoção passar por conta da necessidade do deslocamento e outras que acabam se envolvendo com funções mais administrativas, como organização de eventos.

"Na mesa de abertura, é o 'Clube do Bolinha'. Você vê eventos do Ministério Público, do Poder Judiciário, de maneira geral, com 15 pessoas de terno e nenhuma pessoa do sexo feminino."

Resistência às mudanças

A alteração da regra de promoção para a segunda instância, aprovada no CNJ, enfrentou resistência de tribunais do país. A aprovação só foi possível após a retirada da proposta de alterar o critério de antiguidade, questionamento feito pelo conselheiro Richard Pae Kim, juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Bonelli afirma que a corte estadual, a maior do país, foi muito atuante em resistir à criação do CNJ, que acabou incluindo a participação de magistrados de diversos tribunais. Internamente, ela afirma que a resistência a mudanças também existe na corte, que sinalizava não existir discriminação contra as mulheres.

"Não é bem assim. As pessoas progridem quando elas chegam numa posição, mas elas precisam chegar lá, e há obstáculos para isso. Algumas percorrem o caminho profissional com tranquilidade. Para outras, principalmente aquelas que são diferentes, o caminho é feito com cautela, com a necessidade de atuar sobre si mesmo para se adequar àquela realidade."

Ela exemplifica citando as perguntas desconfiadas feitas às mulheres durante as entrevistas em concursos e a padronização em termos de vestuário e penteado, algo que muda a partir do reconhecimento entre os próprios pares.

"Já posso deixar o meu cabelo na sua condição natural de ser encaracolado e não achar que vão pensar que cabelo encaracolado não cai bem para juiz. É um conjunto de situações que algumas das mulheres com as quais conversei ao longo da minha vida profissional falaram que viveram no Tribunal de Justiça de São Paulo."

Bonelli diz que, mesmo com a aprovação da mudança, ainda deve haver resistência no processo de aplicação da regra e cita como exemplo a cota para magistrados negros.

"Apesar de o CNJ tomar medidas, a implementação pode encontrar formas de fazer com que o processo tenha menos impacto do que poderia ter. É importante que as pessoas se disponham a ouvir sobre isso."


RAIO-X | Maria da Glória Bonelli, 66

É graduada em ciências sociais pela UFRJ, mestre pela PUC-SP e doutora pela Unicamp. É professora titular sênior do Departamento de Sociologia, da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). Autora de estudos sobre profissões jurídicas e gênero, entre eles o livro "Profissionalismo, Gênero e Diferença nas Carreiras Jurídicas" (EdUFSCar).

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