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Malafaia enlaçou direito e religião ao lado de Bolsonaro

Em ato na avenida Paulista, pastor produziu e se apropriou de um cristianismo generalizado

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Renata Nagamine

Pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Religiões no Mundo Contemporâneo no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)

Aramis Luis Silva

Pesquisador de pós-doutorado em ciências sociais na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo)

No ato em defesa de Jair Bolsonaro no último domingo (25), o pastor Silas Malafaia não desfiou crenças nem se preocupou com santidades. Falou de políticos e seus atos da última década ao presente. Discursando antes de Bolsonaro, trançou direito e religião para rearticular ao seu modo democracia e Estado de Direito.

Foi uma construção em três atos.

Primeiramente, Malafaia recontou a história recente do Brasil por meio de flashes: a contestação das eleições por Aécio Neves em 2014, as respostas das instituições aos protestos dos militantes da esquerda, o impeachment, a condenação de Lula, o interdito a chamá-lo de ex-presidiário, e o que ele apresentou como parcialidade do ministro Alexandre de Moraes. Este, com o ministro Luís Roberto Barroso, teria assumido a "extrema direita" como inimigo a ser enfrentado.

O pastor Silas Malafaia discursa durante ato na avenida Paulista, no domingo (25) - Bruno Santos - 25.fev.24/Folhapress

Malafaia assim foi mostrando para uma audiência em verde e amarelo, bandeiras do Brasil e de Israel em punho, o suposto engenho de pessoas e instituições na pavimentação do caminho para perseguir Bolsonaro, quem são os algozes dele, e a duplicidade da Justiça em relação a ele e a Lula. A isso deu o nome de "engenharia do mal".

Segundo, Malafaia perguntou à multidão, vista de cima do trio, a quem ela obedecia, ao que respondeu, em altíssimo som: "Ao povo". Encenou desse modo a disputa pela unidade social, pressupondo ter o povo ao seu lado. Não custa lembrar, foi ideia do pastor o ato na avenida Paulista, um modo de traduzir em imagens o que seria essa entidade.

Terceiro, encerrando sua participação, se dirigiu à multidão como "maioria cristã". Sob esse nome, reuniu evangélicos e católicos, apontando para alianças e os limites do que ele imagina ser o pluralismo brasileiro em matéria de religião.

O debate público sobre religião no Brasil é tão profícuo quanto míope. O foco nos evangélicos ofusca mudanças no campo católico. Ciente delas, Malafaia contemplou em seu discurso católicos críticos da Teologia da Libertação e dos movimentos sociais intitulados progressistas.

Para reunir evangélicos e católicos sob um nome, Malafaia produz um cristianismo generalizado. Então se apropria desse cristianismo para imprimir uma marca discursiva religiosa no que chama de "maioria da sociedade brasileira". A religião aparece como linguagem capaz de constituir uma ordem em que Malafaia disputa com seus antagonistas a unidade social.

Para isso, não precisou saber a religião de quem estava na Paulista. Discursando à multidão e aos convidados no trio elétrico, projetou na audiência imaginada do seu discurso a imagem que ele cultiva da sociedade brasileira. Por meio de pares opostos, desenhou um pluralismo religioso, para ao fim fazer caber nele "quem não tem religião".

Malafaia falou de política como um pastor. Em cerca de 20 minutos, alternou entre o tom clamoroso e o entusiasmado. Essas tonalidades se imprimiram na sua voz, modulando o discurso.

Não satisfeito em projetar para a multidão a imagem de uma injustiça contra Bolsonaro, se empenhou em fazer ver aquilo que ele considera injusto à luz dos padrões jurídicos vigentes. Encenou uma defesa do Estado de Direito.

À perseguição de Bolsonaro pelo ministro Alexandre de Moraes, contrapôs a liberdade. Hábil, entoou uma sugestiva estrofe do Hino da Independência: "ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil". Quando a audiência aderiu em coro, ficaram visíveis os limites entre convicção e ameaça.

A liberdade conecta o discurso de Malafaia sobre direitos com o que ele anuncia como religião. Também a conecta com uma ideia heroísmo cívico. Para compatibilizar liberdade e religião, aposta na mediação da imagem cênica. Seria a essa imagem projetada que a audiência se conectaria, não a ele.

A aposta de Malafaia interpela a associação comum da religião a crenças e dogmas. Essa associação diz da matriz em que a religião ganhou forma no Brasil, o pensamento social católico. Ao mesmo tempo, dificulta perceber que a dimensão religiosa da participação de Malafaia no ato em defesa de Bolsonaro está menos no teor do discurso do que na performance.

Está na voz dramática ora clamorosa, ora elevada. Está na oração que evidencia o religioso como uma experiência coletiva. Está nos movimentos corporais que conectam palavras com emoções. Está na afirmação de que, se preso, Bolsonaro será exaltado, projetando nele a figura do mártir. Aponta para uma luta em novos contextos.

Em pesquisas no projeto "Pluralismo religioso e diversidades no Brasil pós-Constituinte" (Cebrap/Fapesp), entendemos por religião uma linguagem que um repertório textual e imagético historicamente constituído como religioso põe em funcionamento na vida social. As pessoas agem nessa linguagem e ela age sobre as pessoas. Compreender essa operação é crucial para entender como igrejas formam atores políticos.

Dessa perspectiva, a religião, como categoria para a análise social, designa modos de agir. No caso de Malafaia, foi antes uma ação por meio do discurso e da performance do que uma substância a que ele se refere. No último domingo, Malafaia falou não de religião. Falou do mundo, religiosamente.

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