Combate à exploração sexual infantil faz 20 anos e enfrenta retrocesso

País precisa encarar o problema e evitar que avanços obtidos se percam

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São Paulo

O Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças completou na segunda-feira (18) duas décadas de avanços tímidos seguidos por um quadro de retrocesso.

A avaliação foi feita pelos participantes da quarta edição do seminário Exploração Sexual Infantil, realizado pela Folha. Transmitido no formato webinar, o debate iniciou-se a partir da exibição do documentário “Um Crime Entre Nós”, dirigido por Adriana Yañez.

“Como fazer um filme que ninguém quer ver?”, perguntou a diretora. O diagnóstico é que, apesar da disseminação do problema —a estimativa é de que 500 mil crianças e adolescentes sejam vítimas de exploração sexual por ano no Brasil —, o assunto é pouco debatido.

“Queremos constranger a sociedade, porque entendemos que uma sociedade constrangida, incomodada, pode pressionar o poder público para a construção de políticas públicas eficientes”, diz Luciana Temer, diretora-presidente do Instituto Liberta, um dos patrocinadores do filme.

“A exploração sexual vem se enraizando nesse país há décadas, naturalizou-se a troca de sexo com crianças e adolescentes por pequenas coisas, um cacho de uvas, uma sandália, um crédito no telefone”, afirma a educadora e ativista social Amanda Ferreira, que atua em Manaus. ​

Para a jornalista Eliane Trindade, editora do Empreendedor Social da Folha e autora do livro “As Meninas da Esquina” (2005), o tema foi deixado de lado na agenda desde então, como se o problema tivesse sido resolvido.

“É uma questão ainda muito invisível. Nunca temos a dimensão exata da exploração sexual no país, porque é um problema que começa dentro das famílias, de casa”, diz.

A editora e colunista da Folha aponta que, há 15 anos, uma rede de proteção às vítimas estava sendo montada, mas que esse esforço foi desarticulado. “Estamos falando de um país que retrocedeu no atendimento, no olhar para essa questão.”

A necessidade de orçamento para os programas de enfrentamento, capacitação e sensibilização dos profissionais que atuam na rede e a importância da educação sexual das crianças nas escolas foram um consenso entre os participantes.

“Precisamos de políticas públicas, de orçamento, de apoio às vítimas por meio de assistência psicológica e suporte à investigação desses crimes”, cobra Pedro Hartung, advogado e coordenador do programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, que também patrocinou o documentário.

Hartung cita, por exemplo, a necessidade de maior rapidez no encaminhamento das denúncias recebidas pelo Disque 100, canal exclusivo para violência sexual contra crianças e adolescentes. Segundo Amanda Ferreira, muitas meninas vítimas de violência sexual acreditam que, ao denunciar o abusador, ele sairá de suas casas e elas terão paz, mas é o contrário.

“Ou quem sai de casa é a criança que vai para um abrigo, ou ela continua em casa com seu abusador, sendo culpada pela destruição do lar. Se esse abusador é preso, ela continua sendo culpada por ter tirado de casa a pessoa que servia como fonte de renda.”

Trindade aponta que em um dos casos que retratou em seu livro, a menina afirmou que não denunciava os estupros cometidos pelo tio com quem morava, porque perderia a casa e faria as tias se revoltarem com ela. “Quando a menina denuncia, as consequências podem trazer mais violência e desestruturação para sua vida. Por isso é tão importante a rede de apoio.”

Esse ciclo de violência tem como pano de fundo o machismo, a misoginia e o racismo que permeiam a sociedade, afirma Yañez, apontando que as principais vítimas de violência sexual são mulheres negras, jovens e de classes sociais mais baixas.

“O corpo da mulher negra e criança é um corpo que vale muito pouco, é visto como se estivesse disponível para prazer e usufruto irrestrito pelo homem. É um corpo objetificado”, diz a diretora.

Ao mesmo tempo, uma menina branca em uma favela torna-se objeto de desejo na comunidade, afirma Trindade. “Com 12 anos ela começa a ser desejada pelos traficantes, ela é quase um ET naquela sociedade, então ela também sofre violência por ser branca.” Por isso, o combate ao problema passa também pela educação sexual e de gênero de meninas e meninos nas escolas, afirma Temer.

Longe de incentivar as crianças a fazerem sexo, como apontam críticos, a proposta da inclusão desse tipo de conteúdo é que as crianças entendam seu próprio corpo, seus limites e o que pode ser uma potencial violência.

“Há crianças que são abusadas por anos e ninguém sabe, porque aquela criança não tem referência para entender que o que ela sofre é uma violência. Educação sexual é uma ferramenta de autoproteção”, afirma Yañez. A educação de gênero também é importante para discutir a masculinidade com os homens, desconstruindo a ideia do “macho”, diz Ferreira.

Tentativas de cerceamento da liberdade de discussão nas escolas que tramitam no Congresso são uma ameaça ao enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, afirma Temer. “Não se trata de invadir os valores das famílias. A questão é alertar para situações de violência.”

O segundo risco atual identificado pela diretora do Liberta é a proposta de regulamentação do ensino domiciliar, enviada ao Congresso pelo governo Jair Bolsonaro. “Em tese, não há nada de ruim na proposta, mas existem estudos mostrando que boa parte das violências, em especial as sexuais, acontecem dentro de casa”, diz Temer. “No contexto de violência que existe no Brasil, não é bom a criança ficar em casa fora do olhar da escola.”

Enquanto os problemas antigos persistem, novas maneiras de exploração surgem, aproveitando-se das ferramentas tecnológicas. O advogado Hartung salienta a relevância crescente desse tema em função do consumo massivo de mídias digitais.

O enfrentamento à violência nos espaços virtuais impõe um desafio de coordenação para além dos governos nacionais. “É preciso o apoio de uma governança internacional, gerar um serviço de apoio às vítimas, especialmente nesse tempo de pandemia.”

Muitos dos vídeos disponíveis em sites pornográficos gratuitos retratam situações de abuso sexual, como relações entre pai e filha, tio e sobrinha, atrizes simulando meninas muito jovens, afirma Temer — o termo “novinha” está entre os mais buscados nesses sites, mostra o documentário.

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