Projeto Conte para Alguém reúne depoimentos de adultos que sofreram abuso quando crianças

Objetivo de livro idealizado por psicóloga é abordar tema tabu com o público infantil

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São Paulo

Quando ela chegou à consulta, sozinha, ele pediu que tirasse a roupa. Marina, 16, virgem que sequer tinha dado o seu primeiro beijo, ficou constrangida. Achou estranho, mas obedeceu —ele era de confiança e conhecia sua madrasta. Quando deitou na maca, o médico começou a acariciar seus seios, depois abriu suas pernas e tocou em sua vagina.

Marina, que pediu que seu sobrenome não fosse revelado, hoje tem 42 anos, mas nunca se esqueceu daquele dia. Ela foi ao pediatra, um médico reconhecido em sua cidade, por causa de uma rinite, mas saiu envergonhada e confusa, com uma receita de spray nasal em mãos.

Na única vez em que tentou contar o ocorrido, sua madrasta disse que não havia nada de errado, e que o médico apenas tinha feito uma avaliação geral. Demorou 20 anos para entender que havia sido vítima de violência sexual. “Não precisa ter havido penetração. Às vezes é difícil para a mulher entender quando não é assim, mas há várias formas de abuso”, diz.

Sua história é uma das mais de 40 publicadas no projeto Conte Para Alguém, que reúne relatos anônimos de homens e mulheres que passaram por abusos sexuais durante a infância e adolescência. Cada caso é compartilhado nas redes sociais acompanhado de uma ilustração.

A idealizadora do projeto é a psicóloga Thais Morello, que atende casos como o de Marina. Inspirada nos relatos de seus pacientes, decidiu escrever um livro para crianças que abordasse o tema.

“Conte Para Alguém” foi lançado em 2017. Na história, uma menina de 12 anos vai dormir na casa de uma amiga e é tocada pelo pai de sua colega. A narrativa ganhou um tom mais leve e lúdico, mas serve para orientar os pequenos sobre os limites de seus corpos. “Muita gente passa 20, 30 anos, sem nunca falar. Daí o nome.”

Quando Luiza Pannunzio recebeu o convite para ilustrar o livro, aceitou logo. “Fiquei emocionada. O texto falava de uma criança da idade da minha filha”, diz ela, autora também das ilustrações deste caderno especial.

A dupla fez uma página no Facebook, convidando pessoas a compartilharem suas histórias. O primeiro relato demorou um mês para chegar, mas, depois, o número só aumentou.

Morello convidou a colega Jéssica Donato para ajudá-la. As psicólogas trocam mensagens com a vítima, reforçam que ela não teve culpa e orientam na busca por ajuda profissional. Se a pessoa autorizar, Pannunzio recebe o texto, o ilustra e então ele é publicado com nome fictício.

“Conte Para Alguém” também é o livro de Thais Morello que menos vende e, sempre que ela é chamada para visitar escolas, o assunto fica fora das conversas. “É um tabu. Os próprios adultos não sabem lidar e não sabem como conversar com o filho sobre o assunto”, diz.

Segundo ela, os abusos parecem seguir alguns padrões. Um deles é que muitos pais não acreditam no relato dos filhos ou “até preferem não acreditar para não ter que lidar com todo o resto”. Eles também costumam ser cometidos por alguém de confiança. “A criança é seduzida por alguém que dá atenção. [O abuso] é a traição do amor. Ela acredita no amor, mas é traída e fica com uma marca para o resto da vida.”

Alguns levam uma vida até perceber que o abuso foi real.

Ilustração de coelha com vestido ao lado de animal maior com focinho grande e óculos
A coelha Ritoca e o lobo Tio Pipoca em ilustração de Thais Linhares para o livro ‘Não Me Toca Seu Boboca’, de Andrea Taubman - Thais Linhares/Divulgação

A escritora Andrea Viviana Taubman também está nesse front para quebrar o tabu sobre o assunto. Na primeira página de seu livro infantil “Não Me Toca Seu Boboca”, a protagonista e narradora, a coelha Ritoca, diz o que veio fazer: contar uma história “meio difícil de entender e muito difícil de falar”.

A ideia do livro surgiu enquanto ela fazia trabalho voluntário em um lar de acolhimento de crianças e adolescentes vítimas de maus tratos. Na história, o abusador é o tio Pipoca —ilustrado por Thais Linhares como um lobo em pele de cordeiro—, um homem muito simpático que sempre está perto da crianças para brincadeiras e agrados. Até que um dia chega perto demais.

Ritoca percebe que aquele contato começa a ficar estranho, grita “se afasta, seu boboca” e vai contar para os amigos. “É um livro que mostra a relação interpessoal do abusador, quase sempre alguém de confiança.” E quem é a heroína? “A própria narradora, uma criança informada, que depois vai ajudar as outras.”

Conte Para Alguém
Ed. Metanoia. R$ 35 (52 págs.)
Facebook: Conte Para Alguém. Instagram: @conteparalguem

Não Me Toca Seu Boboca
Ed. Aletria. R$ 35 (40 págs.)

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