'Tinha pesadelos em que tentava falar e alguém me enforcava', diz vítima de abuso sexual

Jovem abusada pelo padrasto relata a dificuldade em conseguir contar o que sofria e como o teatro a ajudou

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São Paulo

Aos 11 anos, a baiana Victória começou a ser abusada pelo padrasto. Como muitas outras vítimas, ela se sentia incapaz de contar sobre a violência que sofria.

Aos 14 anos, conseguiu dividir seu sofrimento com a família. A denúncia na polícia chegou a ser feita, mas não teve prosseguimento. Seu agressor continua solto e, segundo ela, fazendo outras vítimas.

Hoje, aos 18 anos, morando em Camaçari (BA), se encontrou no teatro e no candomblé. Na falta da justiça terrena, ela aguarda pela divina.

Quando tudo começou, eu ia fazer 12 anos. Na época, meu padrasto já estava com a minha mãe havia um ano. Eu nunca tinha sentido maldade no jeito dele. Não entendia que ele me tratava tão bem porque queria fazer alguma coisa comigo.

Num dia, fui tomar banho e vi que ele estava me olhando pela janelinha. Aí, ele gritou e mandou eu abrir a porta. Eu fiquei com medo e abri.

Ele pediu para dar um beijo na minha parte íntima. Eu paralisei, não tive reação para nada, só sabia chorar.

Foi aí que começaram os abusos. Ele levava minha mãe até o ponto de ônibus, esperava ela ir trabalhar e depois voltava para mexer comigo.

No início, ele me comprava presentes para tentar me calar, me dava chocolate. Eu jogava quase tudo fora.

Aos 13 anos, eu comecei a beber. Tomava cachaça Pitú todo dia. Eu preferia ficar na praça do que dentro de casa, porque sabia que, quando voltasse, ia ser um terror.

Também comecei a fazer teatro. Me encontrei ali, porque a gente passa uma coisa que não está vivendo. Esquecia da minha realidade, vivia uma ilusão que me fazia bem.

Passei a me mutilar, a me cortar na frente da minha mãe. Ela não entendia o que acontecia comigo, achava que era uma adolescente rebelde.

Eu não conseguia comunicar o que estava acontecendo. Pensava que ia destruir a vida da minha mãe, que ela ia brigar comigo. Tinha vergonha, nojo de mim. Eu preferia não ter paz do que estragar a paz da minha casa.

Eu me sentia incapaz. Tinha pesadelos em que eu tentava falar e alguém me enforcava. Tudo porque queria colocar isso para fora e não conseguia.

Ilustração de medida deitada com a cabeça apoiada em pedra e com mancha de tinta vermelha sobre seu corpo
Ilustração: Luiza Pannunzio

A primeira pessoa com quem conversei sobre isso foi a minha melhor amiga. Ela chorou muito, ficou desesperada. Contou para a mãe dela, mas ela ficou com medo e não quis se meter.

Eu tentei contar para a minha mãe uma vez. Mas, quando ela falou com o meu padrasto, ele disse que tinha me confundido com ela, e minha mãe acreditou. Mas era impossível me confundir com ela, ela era muito maior do que eu.

Os abusos eram diários e foram piorando com o tempo. Ele ia avançando por cada parte do meu corpo. Então, quando tinha uns 14 anos, consegui contar para a minha avó, mãe do meu pai.

Ela não deixou eu voltar para casa. Disse que ia me levar ao shopping, mas, quando a gente chegou a Salvador, paramos na frente do Nina [Instituto Médico Legal Nina Rodrigues], onde fui examinada. Meu pai, com quem eu tenho pouco contato, ficou responsável pela denúncia, mas não deu prosseguimento.

Muitas pessoas me culparam. Falaram que eu não deveria ter usado certas roupas dentro de casa, que não deveria ter dormido de short.

Fiquei morando na casa da minha avó. Depois, minha mãe disse que estava arrependida, que não ficaria mais com ele. Então, eu voltei para casa.

Ele não morava mais lá, mas, passou um tempo, e ela voltou com ele. Está com ele até hoje, mesmo sabendo que ele já abusou de mais uma pessoa.

Há sete meses, eu decidi sair de casa. Encontrei uma família muito especial, a família do candomblé, que me acolheu.

Tinha parado de estudar e, neste ano, voltei. Estou no primeiro ano do ensino médio. Também continuo no teatro.

O que eu mais gosto é o teatro infantil, por conta da pureza do olhar das crianças quando eu estou no palco. Pretendo seguir a carreira de atriz. Neste mundo, a gente precisa sair um pouco da realidade.

Hoje, estou feliz. Não tenho peso nenhum na consciência. Não tenho arrependimento de não ter falado antes, porque eu sei que não era capaz de falar, que não tinha estrutura psicológica para isso.

Eu não me esqueci do que aconteceu, mas consegui tirar um trauma enorme da minha cabeça. Quando a gente está numa religião assim, crê muito na justiça de Deus. Acredito que para ele a punição vai chegar.

Agora, eu só quero viver o lado bom da vida.

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