Descrição de chapéu 7º Fórum A Saúde do Brasil

Incerteza sobre fim da pandemia aumenta riscos para saúde mental

Definir rotinas alivia angústias causadas por isolamento social sem previsão para acabar, dizem especialistas

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São Paulo, Santa Maria (RS) e Belo Horizonte

Em janeiro deste ano, antes da chegada do coronavírus, a médica Mayra Machado, 33, embarcou para a Antártida e passou um mês confinada com outros pesquisadores e militares embarcados na Estação Comandante Ferraz, base brasileira no continente. O objetivo era investigar o que acontece com a saúde mental das pessoas em situações de isolamento social.

Os tripulantes da base são aconselhados a organizar horários para cada atividade, a fim de evitar distúrbios do sono e depressão, já que no verão antártico faz sol na maior parte do dia. "Nós não sabíamos se estávamos almoçando ou jantando”, conta Mayra. “Essa confusão pode gerar insônia e rebaixamento do humor, que podem desencadear uma doença mental.”

Ela diz que sua grande aliada para manter a saúde psíquica durante o isolamento na Antártida foi a criação de uma rotina. "Melhorei minha alimentação e comecei a usar aromaterapia, para não correr riscos de complicações de saúde", afirma a médica, que manteve as práticas de autocuidado cultivadas durante a viagem ao voltar para casa.

A médica está sorrindo em navio na Antártida
A médica e pesquisadora Mayra Machado em viagem à Antártida, onde coletou informações sobre a saúde mental das pessoas em isolamento social - Bruna Mendonça

A pesquisadora coletou informações sobre o comportamento de 109 pessoas, sendo 25 pesquisadores e 84 militares. Mayra entrevistou os tripulantes e anotou em seu diário de campo variações de humor e sono. O estudo deverá levar mais quatro anos para ser concluído e faz parte do projeto SaúdeAntar da UFF (Universidade Federal Fluminense), uma parceria com a Marinha.

A pandemia teve início pouco depois da volta de Mayra ao seu apartamento, no Rio de Janeiro. Para ela, o isolamento atual é pior do que a experiência anterior. "A diferença entre a viagem e a pandemia é que eu sabia que a primeira tinha começo, meio e fim”, diz. “Havia treinamento, preparação para viver aquilo, recomendações de como lidar com cada adversidade. Na pandemia, é tudo indeterminado.”

Numa enquete realizada pela Folha na internet em julho, a incerteza foi assinalada por 68% dos 567 participantes como o sentimento mais frequente na pandemia. Esperança, frustração, medo e tranquilidade eram algumas das 28 alternativas de múltipla escolha. Com respostas de todos os estados, o levantamento indicou ainda ansiedade (67%) e angústia (51%) como sentimentos mais relacionados ao período pós-pandemia.

De acordo com a psicanalista Luciana Saddi, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), rotinas geram uma sensação de segurança e perdê-las pode ser muito desgastante. “A rotina é uma espécie de pílula diária anti-enlouquecimento. É o que faz as coisas parecerem reais”, diz.

A psicanalista e doutora em filosofia Maria Homem segue a mesma linha. Para ela, é nesses momentos de indeterminação, quando o ser humano se dá conta de que não domina o tempo, que ele cria estratégias imaginárias de previsão e controle. “A gente precisou ser atravessado por algo fora da rotina, pela seta do trágico, para entender que a condição humana nada mais é do que viver e navegar na incerteza”, ela diz.

A psicanalista também considera o momento que estamos vivendo um marco simbólico para a humanidade. "Tem o antes e tem o depois da pandemia”, explica. “Se você entrou nessa pandemia e vai sair igual, você fez muito esforço pra isso."

Durante a pandemia, o psicólogo André Daconti, 34, se dividiu entre atendimentos a pacientes com Covid-19 em um hospital no Recife e sessões de terapia em seu consultório online.

O medo de contaminar a mãe idosa, com quem mora, levou a uma rotina de higienização diária e distanciamento físico em sua própria casa. “Tudo isso é muito cansativo, mas não entrei numa situação de só olhar o problema”, diz.

Para conter a ansiedade com as incertezas do período, André baixou um aplicativo para meditação e regulou o sono. Também seguiu com sua própria terapia. “E agora que as coisas estão melhorando, vou à sorveteria, me permito assistir a um filme no meio do dia. Essa quebrada de rotina é boa”, afirma.

O psicólogo também lidou com a impossibilidade de estar presente no nascimento de um sobrinho durante a pandemia, já que o irmão mora em Belo Horizonte. O costume de reunir a família a cada dois ou três meses foi trocado por encontros em videochamadas. “A gente se liga, manda foto, vídeo, vai acompanhando o desenvolvimento dele. Mas foi pesado para a nossa família. Suprir a falta dessa maneira é bem diferente”, diz Daconti.

O psicólogo está à frente de uma escada, encostado na parede, usando máscara e óculos de grau, de braços cruzados.
Durante a pandemia, o psicólogo André Daconti se dividiu entre atendimentos a pacientes com Covid-19 em um hospital no Recife e sessões de terapia em seu consultório online - Léo Caldas/Folhapress

Na linha de frente do enfrentamento do coronavírus desde o início da pandemia, a enfermeira Giuliana Valderano, 30, de Guarulhos (SP), começa a contar os dias assim que tem contato com um paciente que pode estar infectado, para saber se está em tempo de desenvolver os sintomas da Covid-19.

Ela trabalha em turnos de 12 horas dentro de uma ambulância UTI, em um espaço sem ventilação. “Não sabemos quem tem a doença e isso vira uma paranoia”, afirma. Com o adoecimento de colegas, a jornada dupla para cobrir o plantão se tornou frequente. “Teve uma semana que fiquei cinco dias sem aparecer em casa. Tive uma crise de choro, desespero mesmo."

O descanso em casa só começa depois de uma rotina extenuante de procedimentos de higienização e de uma alimentação rica em doces, que, segundo Valderano, promove o relaxamento necessário para enfrentar a próxima jornada.

A enfermeira Giuliana Valderano está sentada na poltrona dentro de uma UTI móvel (ambulância), onde trabalha. O carro é azul e branco e está marcado "UTI móvel" na lataria. Giuliana está vestida com um macacão azul, de tênis e uma máscara azul claro.
Na linha de frente do enfrentamento do coronavírus desde o início da pandemia, a enfermeira de UTI móvel (ambulância) Giuliana Valderano ajuda no transporte de pacientes entre hospitais. - Zanone Fraissat/Folhapress

Para Luciana Saddi, a quebra de rotina causada pela pandemia pode levar as pessoas a criar subterfúgios para lidar com a nova realidade. “Tem gente que sente falta do trânsito e do cafezinho no trabalho, porque era um momento para si, de descontração”, diz. “Como elas não conseguem trazer esses momentos para dentro de casa, pode haver abuso de álcool, como se fosse um curativo para a dor.”

De acordo com uma pesquisa feita pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), vinculada ao Ministério da Saúde, entre abril e maio, 18% dos brasileiros relataram maior ingestão de bebidas alcoólicas durante o isolamento social. Segundo o estudo, que coletou respostas de 44.062 pessoas por meio de questionário na internet, o aumento foi mais evidente entre aqueles que disseram se sentir tristes com regularidade.

Resultados ainda mais expressivos foram encontrados pela Global Drug Survey, numa pesquisa que contou com 80 mil participantes do mundo todo. Dados preliminares, coletados entre maio e junho, revelaram que 44% consumiram álcool com mais frequência na pandemia. No Brasil, 41% disseram ter aumentado o número de dias em que beberam.

As consequências desse aumento foram sentidas pelos Alcoólicos Anônimos. Desde março, o número de pedidos de ajuda registrados pelo grupo por mês triplicou. Segundo Fábio Mota, colaborador da Junaab (Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil), a entidade tem realizado por mês mais de 4 mil reuniões online , com cerca de 38 mil participantes de todo o país.

A mudança das reuniões, do formato presencial para a internet, fez com que públicos menos frequentes se tornassem comuns. "Algumas pessoas tinham dificuldade de entrar em uma sala e se expor. Na reunião online, nós percebemos um aumento de jovens e mulheres", afirma Mota.

Algumas pessoas buscaram novas experiências durante o período de isolamento social. O designer Filipe Lampejo, 31, e o artista Vinícius de Souza, 32, um casal de Belo Horizonte (MG), decidiu conhecer a fundo o mundo dos cogumelos alucinógenos.

Eles tiveram o primeiro contato com a substância em maio. De lá para cá, foram mais cinco experiências, todas com a espécie Psilocybe cubensis. "O cogumelo está sendo essencial, porque dá uma lufada de lucidez em relação aos processos difíceis que estamos passando”, diz Souza. “Acho que estou mentalmente melhor."

Antes de tomar a substância, o casal espalha papéis e tintas pelo apartamento, para o caso de a vontade de pintar aparecer, e prepara playlists com músicas que apreciam. Além da experiência visual, que envolve cores e brilho, eles dizem que os cogumelos os levam a um estado de contemplação que permite apreender a essência das coisas.

Vinícius de Souza e Filipe Lampejo na sala do apartamento em que Vinícius vive. Vinícius está sentado à esquerda, em uma cadeira, e Filipe, à sua direita, está sentado no chão, com as pernas cruzadas. Atrás do casal, há uma grande janela e algumas plantas. Ambos vestem preto.
Vinícius de Souza e Filipe Lampejo, casal de Belo Horizonte (MG), tiveram experiências com cogumelos alucinógenos durante o isolamento social. - Alexandre Rezende/Folhapress

Para Souza, o alucinógeno permite contemplar situações rotineiras sem ansiedade, e em nada se relaciona com a noção de fuga da realidade. Com as experiências, o casal também pretende ajudar a desmistificar a ideia de que não é possível “voltar ao normal” após a ingestão dos alucinógenos.

“No nosso caso é o contrário”, diz Souza. “A gente está tomando justamente para não voltar. É algo que nos ajuda a reconhecer o mundo de outra forma, e esse olhar que estamos experimentando a gente não quer que volte ao normal mesmo.”

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