Descrição de chapéu Vida cultural na pandemia

Projetos culturais ainda ficam longe do radar dos doadores individuais brasileiros

Contribuições de pessoas físicas são mínimas e estão estagnadas, mas estudo vê potencial de crescimento

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Em 2019, 13 mil pessoas doaram, via renúncia fiscal, pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, R$ 47 milhões para projetos culturais. Este ano, o volume foi, até agora, de cerca de R$ 7 milhões mobilizados por cerca de 5.000 doadores. Historicamente, o montante de doações de pessoas físicas representa, no Brasil, de 2% a 3% do total do volume captado. Quase nada.

Além da pouca quantidade, o que chama a atenção, quando se fecha o foco sobre a participação das pessoas físicas nos mecanismos de renúncia fiscal, é a estagnação.

Outra característica dessas doações, segundo o estudo do Observatório do Itaú Cultural, é que tendem a ser recorrentes e concentradas entre os dez maiores doadores. “Alguns indivíduos fazem contribuições significativas e existe grande potencial de expansão desse tipo de doação”, escrevem os autores do estudo.

A afirmativa toma por base números e dados indicando que, ao contrário do que apregoa o senso comum, há, sim, uma cultura de doação no país. Ainda que seja pequena se comparada à dos EUA, está longe de ser insignificante.

A pesquisa Doação Brasil, de 2016, coordenada pelo Instituto pelo Desenvolvimento do Investimento Social e operacionalizada pela Gallup, revelou que 46% dos brasileiros fizeram doações em dinheiro a instituições sociais em 2015, totalizando R$ 13,7 bilhões.

A cultura tende, porém, a estar fora do radar dos doadores brasileiros. Em 2020, com a crise do coronavírus, isso não foi diferente.

“Houve um aumento nas doações este ano, mas elas foram muito direcionadas para a Covid-19 —apoio a hospitais, compra de equipamentos etc. O foco de atenção foi outro”, diz Ricardo Levisky, presidente da Levisky Legado. “As instituições culturais, de seu lado, se viram fragilizadas, tendo a necessidade de se reinventar. Algumas conseguiram manter seus apoiadores, mas foi difícil conseguir novos apoios.”

Após a reabertura, foi ficando evidente a dimensão do drama vivido pelo setor. A extensão da pandemia faz com que, mesmo reabertos, os espaços não recebam público. A partir dessa percepção, algumas empresas têm se sensibilizado para cultura.

Mas isso é muito limitado junto às pessoas físicas. “Fala-se que o brasileiro não doa. Mas a questão é: as instituições culturais não investem nesse tipo de captação. É um trabalho de longo prazo, envolve a criação de hábito.”

A inexistência do costume decorre, em parte, da falta de estruturação de entidades e projetos culturais para captar recursos junto a pessoas físicas. Trata-se, afinal, de um caminho diverso daquele a ser percorrido quando se pensa na pessoa jurídica, que pode, sozinha, doar montantes muito maiores. Para ter um volume significativo de doares particulares, há que se mobilizar um vasto número de pessoas.

“Falta conhecimento. As pessoas são mais impactadas por campanhas de alguém doente ou que perdeu tudo o que tinha”, avalia Flavia Manso, gerente de incentivos fiscais do escritório CQS/FV. “Além disso, detalhes da lei não facilitam o processo.”

Ela se refere ao fato de que, no caso da Lei Rouanet, o doador precisa adiantar os recursos em dezembro e só será reembolsado após a declaração do Imposto de Renda, em maio. No caso dos fundos de criança e adolescente, há a possibilidade de o doador não antecipar os recursos —nesse caso, o teto de dedução cai de 6% para 3%, mas não deixa de ser uma opção. Seria interessante estendê-la para a Rouanet e a Lei do Audiovisual, diz.

Esse espaço de tempo entre o aporte e o abatimento é, também na visão de Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, um inibidor de doações. “A pessoa que doa a partir do Imposto de Renda está mais disposta a doar para o universo da criança e do adolescente, que chegou primeiro e conseguiu se estabelecer. E as duas áreas estão na mesma calha de doação”, diz, referindo-se ao fato de que há um teto de 6% acumulado pelas duas áreas.

Segundo Saron, o universo de doação da pessoa física tem funcionado melhor quando as empresas organizam estruturas cooperativas. Um exemplo é a experiência da Unimed de Belo Horizonte, que escolhe projetos, antecipa os recursos e, então, recebe as doações dos médicos.

Na prática, a doação de pessoa física é poucas vezes entendida como um possível benefício fiscal. Os investimentos privados em cultura são, de forma geral, mais motivados por um impulso pessoal do que pelos incentivos fiscais.

Esse foi o caso do investimento de Raí e Paulo Velasco na CineSala, localizada em Pinheiros, em 2014. Velasco conta que a entrada no negócio teve, como mola propulsora, a paixão por duas coisas: o cinema e as questões urbanas.

Mas, apesar de o impulso ser a crença num, digamos, ideal, Velasco diz que, desde o início, teve em mente que o empreendimento tinha de ser economicamente saudável, para se perpetuar. Não foi, portanto, uma doação, mas sim um investimento com propósito.

“Foi ficando evidente, com o tempo, que havia uma demanda reprimida. A sala reúne tanto um público idoso quanto um público jovem. Em 2019, batemos o recorde de frequência”, diz Velasco, que também levou para lá o Barouche, bar originalmente aberto no Largo do Arouche. “O projeto tem a ver com a cidade em que queremos viver.”

Este ano, a sala passou oito meses fechada por causa da pandemia. Reaberta, segue com baixíssima taxa de ocupação —como todas as do país. “Sabíamos que ia ser difícil, mas decidimos que iríamos continuar”, diz o sócio de Raí.

Foi também a paixão pelo cinema que colocou Olga Rabinovich na trilha da filantropia. “A vida me foi muito boa, ganhei muitas coisas e tive vontade de doar”, diz Olga. Ela não queria, porém, apenas fomentar a realização de filmes.

Para entender como podia contribuir para causar impacto, contratou uma consultoria que ouviu dezenas de pessoas do mercado. A partir desse estudo, compreendeu em que lugar do ecossistema do audiovisual faria a diferença. “Chegamos assim ao tema dos roteiristas e do desenvolvimento das nossas histórias”, conta.

A pedra-de-toque do Instituto Olga Rabinovich é o Projeto Paradiso, de formação e capacitação de profissionais, com foco na criação de histórias.

“Não tem preço ver que algumas pessoas puderam, graças ao nosso apoio, se dedicar exclusivamente ao trabalho de criação durante seis meses”, diz Olga, referindo-se às bolsas dadas pelo instituto. “Minha maior motivação era mudar a vida das pessoas. Porque, afinal, são as pessoas que mudam o mundo.”

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.