Médico relata em crônica encontro com paciente que pressentiu infarto

Leia o capítulo 'Pressentimento', publicado por Elias Knobel em 'Memórias Agudas e Crônicas de uma UTI'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Nesta crônica, intitulada "Pressentimento", o médico Elias Knobel relata encontro com Josué, que tinha duas pontes de safena e vivia preocupado com a ameaça de infarto. Na ocasião, o paciente disse sentir que algo aconteceria com ele —e aconteceu.

Josué, atendido pela última vez por Knobel em 2006, morreu no início dos anos 2010.

O texto integra "Memórias Agudas e Crônicas de uma UTI" (editora Atheneu; R$ 26,46, em ebook), lançado em 2002 pelo médico, fundador do CTI do Hospital Albert Einstein.

Josué era um radiologista, de cerca de 60 anos, com histórico familiar de problemas cardíacos e duas pontes de safena. De estatura mediana, com poucos cabelos brancos nas laterais da cabeça e uma miopia acentuada que o forçava a usar lentes grossas, ele vivia preocupadíssimo com a ameaça de um infarto, mesmo sem o menor sinal de mal-estar. Essa ansiedade extremada já era bem conhecida de seu médico, doutor Michel, que sempre o alertava sobre as queixas exageradas. Para atenuar essa preocupação constante com sua saúde, Josué se tratava com um psiquiatra, que havia diagnosticado síndrome do pânico, e era medicado com antidepressivos.

Foto mostra um estetoscópio colocado em uma mesa branca
"Memórias Agudas e Crônicas de uma UTI", escrito pelo cardiologista Elias Knobel, reúne memórias da carreira e experiência com pacientes - Unsplash

Eu o conhecia de encontros sociais, porque Josué morava no mesmo prédio de um parente meu. Mas nunca o havia tratado profissionalmente. Assim, fiquei surpreso quando, em uma manhã de outubro de 1990, fui procurado por ele no hospital. Nos encontramos na entrada do Centro de Terapia Intensiva. Com a fala lenta, pausada, mas carregada de extrema ansiedade, ele me cumprimentou e já emendou, explicando-se: "Doutor, eu não estou muito bem. Tenho um pressentimento de que algo vai acontecer comigo".

Sabendo dos antecedentes do paciente, procurei acalmá-lo, dizendo que aquele pressentimento poderia ser apenas um pouquinho de estresse. Lembrei-o de que estava bem medicado e acompanhado por um excelente profissional. Disse também para ele se distrair, trabalhar menos e tentar levar a vida de forma leve.

Ele me ouviu educadamente, mas continuou insistindo que estava com um mau pressentimento e que tinha certeza de que alguma coisa iria lhe acontecer. Como o consultório anexo ao CTI estava ocupado, ali mesmo no meio do corredor perguntei mais detalhes sobre sua saúde e sobre aquela sensação ruim.

"Você está sentindo alguma dor?"

"Não, doutor, estou só com um pressentimento", afirmou ele, sério.

"Mas se você não sente nenhuma batida alterada no coração, se não tem dor no peito ou falta de ar, por que essa preocupação?", indaguei.

Ele suspirou fundo e começou a contar: "Logo depois da minha caminhada matutina, tive um mau pressentimento e resolvi passar aqui no hospital, apesar de ficar bem longe do meu local de trabalho. Quero ser examinado para poder me sentir mais seguro, já que o doutor Michel, meu médico, está viajando. Acontece o seguinte, doutor, como vocês devem ter anotado no meu prontuário, na época em que fiz a minha cirurgia de implantação das pontes de safena, meu pai também teve um problema cardíaco. O infarto dele ocorreu há uns 10 anos, de uma forma muito estranha."

Olhei em volta e percebi que nossa conversa no corredor de entrada do CTI já chamava a atenção de algumas pessoas que ali se encontravam, esperando o horário de visita. Também entendi que Josué precisava desabafar e ser examinado, em um ambiente mais privativo e tranquilo, para conseguir acalmar-se.

O consultório continuava ocupado. Lembrei-me então de que logo na entrada do CTI, na unidade semi-intensiva, havia um quarto livre. Eu sabia, porém, que a utilização de uma daquelas unidades com monitoração para qualquer outra finalidade que não a internação de um paciente seria como declarar guerra às enfermeiras e à administração do hospital. Mesmo assim, contrariando alguns dos meus princípios, decidi quebrar a regra e levar Josué até lá.

A situação começava a ficar tensa e precisávamos de um lugar com privacidade para resolver aquele impasse. Ninguém percebeu quando entramos. Sugeri a ele que se deitasse na cama. Sentei na beira do leito, imaginando que aos poucos Josué relaxaria e eu conseguiria tirar de sua cabeça aquela preocupação que parecia infundada.

O radiologista continuou falando sobre o seu pressentimento. "Bem, como eu estava dizendo, meu pai também não teve os sintomas clássicos do infarto do miocárdio ou de parada cardíaca. Um certo dia, porém, ele teve um pressentimento de que algo grave aconteceria. Foi até um pronto-socorro e, quando estava conversando com um dos atendentes, passou mal e teve uma parada cardíaca. A sorte é que ele estava em um ambiente hospitalar, foi atendido rapidamente, tratado e até hoje vive muito bem. Desde então, sempre tive receio de que o mesmo se passasse comigo."

Que história absurda, pensei, mas tentei ponderar: "É muito pouco provável que uma pessoa sofra parada cardíaca só por uma preocupação, uma intuição, um apavoramento, sem nunca antes ter sentido dores no peito, arritmia, palpitação, falta de ar — os sintomas que nos indicam que existe algum problema."

Mas ele insistiu: "Doutor, o meu pai estava bem, ele não sentia nada, não tinha dor no peito, só pressentiu que teria uma..."

Antes mesmo que pudesse terminar a frase, Josué arregalou os olhos e ficou pálido. Tomei seu pulso: nada. O impossível estava acontecendo na minha frente: Josué estava tendo de fato uma parada cardíaca, bem ali na cama da unidade semi-intensiva. Fiquei arrepiado, apavorado com a situação inacreditável. E o pior: não poderia contar com a ajuda de ninguém do CTI, pois eles achavam que o quarto estava desocupado.

Imediatamente, adotei o procedimento padrão nas paradas cardíacas: dei um soco forte no tórax de Josué, que parecia ainda ter um pouco de consciência, e comecei a fazer compressões em seu peito. Quando ele ameaçou recobrar os sentidos, corri até a porta do quarto e gritei: "Gente, rápido aqui com o carrinho de parada!" A equipe assustou-se. Continuei a fazer os procedimentos de massagem cardíaca em Josué, enquanto médicos e enfermeiros entravam atônitos no quarto, com os equipamentos. Eles olhavam para mim e não sabiam a quem acudir primeiro: Josué, desmaiado no leito, ou eu, que devia ter um aspecto de pavor.

Dei um choque no tórax do paciente e ele recobrou os sentidos. Olhou para mim e disse: "Eu não falei que estava tendo alguma coisa?" Com um meio sorriso entre os lábios, o vidente ainda murmurou: "Está doendo um pouco, mas nunca vou esquecer o santo soco que você me deu, doutor."

Josué ficou internado alguns dias. Verificamos que ele não chegara a sofrer um infarto. Apesar da loucura da situação, ele havia sido atendido imediatamente, e esse procedimento fez toda a diferença. Sem sequelas, foi submetido a um cateterismo cardíaco e mais tarde precisou ser operado novamente.

Hoje, eu encontro Josué com mais frequência. Desde que o doutor Michel faleceu, passei a ser médico do meu amigo vidente e a atendê-lo a cada seis meses em meu consultório. Sempre que nos vemos, mesmo em eventos sociais, eu cerro os punhos, encosto no seu peito e ele abre o mesmo sorriso daquele dia: "Belo soco, doutor", me diz.

Em meus 35 anos de profissão, aprendi que um médico não deve jamais negligenciar qualquer queixa de
um paciente
, por mais estranha ou absurda que a princípio possa parecer. Shakespeare tinha toda razão ao afirmar que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.

MEMÓRIAS AGUDAS E CRÔNICAS DE UMA UTI

Elias Knobel

Médico clínico e cardiologista, é diretor emérito e fundador do CTI do Hospital Israelita Albert Einstein; autor de ‘Condutas no Paciente Grave’ (ed. Atheneu)

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.