Descrição de chapéu Doenças Raras

Cuidadores de pessoas com doenças raras sobrecarregados precisam de política pública

Para especialistas, plano ideal deveria considerar saúde e questões sociais

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São Paulo

Patrícia Ferreira Miranda, 50, acorda todos os dias às 4h30, dá a primeira dieta do filho às 6h e, embora sinta sono, não dorme antes da última, dada entre 20h e 21h. Ela é mãe de William, 28, que vive com mucopolissacaridose (MPS III-A), doença rara genética que, por causa da falta de um tipo de enzima, leva à regressão neurológica.

Os primeiros sinais da condição, também chamada de síndrome de Sanfilippo, vieram quando o menino tinha quatro anos e uma professora notou que ele não acompanhava o desenvolvimento das outras crianças na escola. O diagnóstico, porém, só foi feito aos 17 anos, quando ele já não andava nem falava mais.

Patrícia é uma mulher negra, de cabelos curtos e escuros; ela usa óculos e veste uma camiseta preta; ela está de mãos dadas com o filho, William, um homem negro, careca e acamado, e faz carinho na testa dele
Patrícia Ferreira Miranda, 50, cuida do filho William, 28, que vive com mucopolissacaridose - Rubens Cavallari/Folhapress

Patrícia é a única responsável por dar banho, trocar fraldas, dar medicação e dieta, e até mudar semestralmente a sonda de gastrostomia pela qual o filho se alimenta há sete anos. Às quartas-feiras, dia de folga no trabalho do caçula, Igor, de 21 anos, ela sai para retirar os insumos necessários para cuidar de William.

A mãe precisou deixar o emprego como manicure para se dedicar integralmente ao filho. Hoje, ela tem uma van escolar, mas não consegue trabalhar por não ter com quem revezar os cuidados. Separada do pai de William há 26 anos, Patrícia é mãe solo.

O sustento vem de doações e do BPC (Benefício de Prestação Continuada), salário mínimo dado a William e utilizado para pagar os R$ 843 de aluguel da casa em que eles vivem no Jardim Santa Margarida, na zona sul de São Paulo.

A instabilidade financeira faz parte da rotina de muitas das famílias que têm pessoas com doenças raras, como demonstra pesquisa do IFF/Fiocruz (Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira). O estudo foi realizado entre 2016 e 2018 com cuidadores de 106 crianças e adolescentes com fibrose cística, osteogênese imperfeita e mucopolissacaridoses atendidos no instituto.

Segundo o levantamento, 86% dos responsáveis pararam de trabalhar após o diagnóstico da condição rara. A dedicação ao paciente demanda de 18 a 24 horas por dia, para 60% deles. Quase 70% relataram ter necessitado de dinheiro emprestado para dar conta de despesas básicas, e quase todos (95%) afirmaram que os gastos mensais aumentaram após o diagnóstico.

"Isso atinge a saúde mental. Como você pode viver minimamente íntegro na sua estrutura psíquica, nas suas relações interpessoais, se você não tem o que comer?", questiona Martha Moreira, pesquisadora do IFF/Fiocruz e uma das autoras do estudo.

Para Moreira, é preciso pensar no cuidado sob três perspectivas: familiar, de saúde –com redes diversas e integradas de atendimento, como prevê o artigo 2º da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras–, e principalmente como política pública, cuja promoção deveria partir do Estado.

A professora afirma que, na elaboração de um plano de cuidado, ouvir instituições que atendam pacientes e familiares poderia facilitar a visão da diversidade entre as pessoas com doenças raras –que podem ser negras, indígenas, de renda mais baixa e moradoras de periferias, como ressalta Moreira– e suas demandas. Assim, a implementação deveria considerar também questões sociais e econômicas.

"Uma condição de saúde rara, caracterizada por ser crônica e complexa, interfere em diversos aspectos da vida. Uma pessoa pobre, negra, não escolarizada e com uma doença rara é diferente de uma pessoa branca, de classe média e com acesso a serviços."

Um exemplo, segundo a pesquisadora, seria rever as regras do BPC de modo que ele não impedisse o emprego formal de pais e responsáveis. Hoje, o benefício é concedido a pessoas com doenças raras apenas quando a renda per capita da família é de até um quarto do salário-mínimo (R$ 303), e só se a condição estiver associada a alguma deficiência.

Além disso, o apoio de cuidadores profissionais seria necessário para que os familiares –sobretudo as mães, que são 73% entre os entrevistados pela pesquisa do IFF/Fiocruz–, possam dar atenção à própria saúde, hábito que eles abandonam se não há com quem revezar as tarefas de assistência, lembra Moreira.

Procurada, a Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência afirmou, sem citar medidas práticas, que, em outubro de 2021, publicou estudo sobre boas práticas de apoio ao cuidador em parceria com o Programa da União Europeia EUROsociAL. A próxima etapa, diz a pasta, envolve a elaboração de políticas públicas para esse grupo, o que ainda não tem data para acontecer.

Sem uma política pública estruturada, o apoio fica a cargo de associações. Patrícia, por exemplo, é assistida pelo Instituto Vidas Raras, ONG que atua com orientação e suporte a pessoas com doenças raras e seus familiares.

Ela recebe uma cesta básica e, quando necessário, insumos para William e ajuda para si mesma. Mesmo com crises de ansiedade e suspeita de vitiligo, nem sempre ela consegue ir às consultas marcadas para acompanhar a própria saúde.

"Não somos reconhecidas. O Estado deveria ajudar as mães que são cuidadoras, porque abandonamos nossa vida –não reclamando de cuidar dele, porque é meu filho. Hoje, se eu cair doente, não tenho ninguém para me ajudar. Se o William falecer hoje, também não tenho garantia nenhuma", diz Patrícia.

A sobrecarga de responsabilidades também é sentida por Bruna Rocha, 35, vice-presidente da AME (Amigos Múltiplos pela Esclerose) e cuidadora do marido, Jaime Fernando, 39, o Jota –eles são pais de Francisco, 5. O casal tem esclerose múltipla, mas a condição se dá de formas distintas em cada um.

Bruna está em pé, diante de Jota; com uma maquininha, ela barbeia o esposo, que está sentado com uma toalha de rosto sobre os ombros e o peito; Bruna é uma mulher branca, de cabelos escuros, médios e ondulados; Jota é um homem branco, careca, com barba curta e escura
O casal Bruna Rocha, 35, e Jaime Fernando, 39, convive com formas diferentes de esclerose múltipla - Anderson Coelho/Folhapress

De modo geral, a doença ocorre quando o sistema imunológico ataca a mielina, membrana que protege os neurônios, atuando como a capa de um fio elétrico. Em Bruna, diagnosticada aos 14 anos com o tipo surto-remissão, é possível controlar a inflamação das lesões nesta membrana e os surtos da doença com medicamentos. Já em Jota, que tem a forma primária progressiva, a mielina se perde ao longo do tempo e os sinais do cérebro deixam de ser transmitidos ao corpo.

Hoje, ele está tetraplégico e em cuidados paliativos. Bruna reveza com a sogra e com uma profissional recém-contratada a assistência ao marido, que precisa de auxílio em todas as atividades da rotina. Assim, ela consegue trabalhar gerenciando os projetos de duas instituições para sustentar a família: a AME e a CDD (Crônicos do Dia a Dia).

"É uma jornada quádrupla, porque é o trabalho, o filho, o cuidado com o Jota, cuidar se as medicações estão todas aqui, se não está faltando fralda, se não está faltando sonda, se tem consultas. É uma atenção 24 horas que exige bastante emocional e fisicamente."

Hoje, eles vivem em Navegantes, cidade litorânea de Santa Catarina, decisão tomada para que Bruna possa incluir cuidados com a própria saúde no dia a dia, como caminhar diariamente. "Ainda faltam algumas coisas que eu gostaria de mudar, mas já consigo não esquecer o meu remédio e fazer os exames de rotina."

Bruna considera fundamental o reconhecimento do trabalho dos cuidadores por meio de políticas de enfoque econômico e em saúde, já que a rotina de assistência afeta o sono, a alimentação, os exercícios e, consequentemente, leva ao adoecimento mental e físico.

A Casa Hunter e a Febrararas (Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras) realizaram uma pesquisa com 500 cuidadores. Do total, 68% não têm atividades de lazer, 74% não realizam atividades físicas e 72% disseram se sentir perdidos e se esquecerem de si mesmos por assumirem a assistência a alguém com condições raras.

Para Antoine Daher, presidente da Casa Hunter e da Febrararas, além dos subsídios financeiros e psicológicos, proporcionar diagnóstico e tratamentos em estruturas especializadas, com equipes multidisciplinares e sem longas filas de espera é uma das formas de aliviar a sobrecarga dos cuidadores.

Hoje, a Casa Hunter oferece atendimento multidisciplinar semanal em parceria com centros hospitalares de São Paulo, Goiânia, da Bahia e do Rio de Janeiro –enquanto os pacientes são atendidos, os responsáveis passam por psicólogos.

Ilustração de várias pessoas diferentes em formas geométricas segurando um vaso de plantas verdes; ao centro da imagem, uma mulher carrega um vaso com plantas vermelhas
Ilustração de Tiago Galo para caderno especial sobre doenças raras; segundo a OMS, condições raras são as que afetam até 65 pessoas em cada 100 mil - Tiago Galo

Com essa e outras ações, mais de 1.500 pessoas são atendidas por ano pela associação, que reúne familiares, pesquisadores e profissionais de saúde para propor soluções para a qualidade de vida de quem tem uma doença rara.

Na pandemia, o Instituto Vidas Raras iniciou um programa de atendimento psicológico remoto para cuidadores e pessoas cuidadas.

Para a advogada Amira Awada, vice-presidente da organização, o que mais se observa são sinais de depressão, quadro agravado pela falta de tempo para tratamento com terapias mais longas e pela dificuldade que cuidadores têm para aceitar ajuda.

"O paciente é importante, mas as pessoas ao redor também precisam ser assistidas, ou o cuidado pode deixar a desejar", afirma ela.

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