Após décadas de silêncio, vítima de violência sexual cria projeto de prevenção e acolhimento

Abusada pelo tio paterno aos 10 anos, Vanessa fundou instituto em BH depois de confrontar a família

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São Paulo

Abusada sexualmente na infância, Vanessa, 52, passou anos sem conseguir falar sobre o episódio. Quando adulta, entendeu que não tinha culpa pelo acontecido e virou ativista, criando, em 2019, o Mila (Movimento Infância Livre de Abuso).

Vanessa acredita que houve negligência por parte de sua família. Ela diz que, mesmo sem entender tudo o que estava acontecendo, deu sinais de que vinha sofrendo e ninguém percebeu. Hoje, prefere não usar os sobrenomes de suas famílias e gosta de se identificar como Vanessa do Mila.

Vanessa é uam mulher branca, de cabelos curtos e grisalhos, ela usa um óculos verde neon, uma camiseta preta, com letras de diversas cores que dizem 'rainbow is the new black', ela também veste um casaco azul
Vanessa do Mila sofreu violência sexual na infância e hoje é uma ativista nessa causa, ela é fundadora do Instituto Mila, em Belo Horizonte - Alexandre Rezende/ Folhapress

Com o movimento, engajou-se na luta para que outras não passem pelo mesmo. O Mila, com sede em Belo Horizonte, oferece apoio psicológico e jurídico para vítimas e familiares e produz material com foco na prevenção.

No ano passado, ela lançou o livro "O Escuro me Abraça" (ed. Ramalhete, 124 págs.), no qual conta a sua história. A obra serviu de base para o depoimento abaixo.

Se eu pudesse voltar no tempo e me fosse concedido o direito de fazer um pedido, escolheria apagar todos os 365 dias do ano em que fiz dez anos. Foi o ano em que fui abusada sexualmente dentro de casa, pelo irmão do meu pai.

Da pré-escola até a quarta série fui aluna exemplar. Estudava em um colégio católico que a cada bimestre distribuía medalhas e certificados de mérito aos alunos com maiores notas. Recebi dezenas.

Pouco antes dos dez anos, tive que me mudar para a escola estadual onde faria a quinta série. No mesmo ano, menstruei pela primeira vez.

Não estava pronta para a puberdade precoce. Cheguei em casa chorando e disse a minha mãe que havia me machucado. Ela me colocou para tomar banho, me ensinou a usar o absorvente e me colocou para dormir. No dia seguinte, disse: "Você agora é uma moça, precisa tomar cuidado". Tomar cuidado com o quê? Não entendia o sentido de sangrar três dias por mês nem sabia a diferença de dormir menina e acordar mocinha.

Quando somos crianças, os adultos inventam mil maneiras de nos "prevenir" contra malfeitores, mas com crenças que dificultam a identificação desses predadores. Alertam contra estranhos, quando se sabe que quase 90% dos ataques partem de pessoas próximas. Se para adultos já é difícil detectar comportamentos abusivos, imagine uma criança entender que aquela pessoa próxima, brincalhona, carinhosa, é o seu algoz?!

No meu caso, não havia possibilidade de confundir o ato com carinho ou brincadeira. Mas era meu tio, não devia ser nada grave ou ruim.

Ele me surpreendia sempre pelas costas e me imprensava contra a parede. Com uma das mãos me calava e, com a outra, tocava meus pequenos seios. A dor, o medo e o desespero terminavam quando expelia aquela gosma de cheiro esquisito e sujava minha roupa, me causando nojo e ânsia. Não entendia aquilo.

Só fui entender quando o assunto começou a ser abordado nas aulas de ciências e ganhei de meu pai um livro sobre puberdade. As descobertas e lembranças criaram em mim imensa revolta. Fiquei cada dia mais agressiva e arredia, agredia primos e colegas.

Todos os dias eu voltava da escola com o uniforme sujo de xixi e cocô. Tinham que ligar para casa pedindo um uniforme reserva. Minha professora nunca negou pedido para idas ao banheiro. Eu é que nunca pedi, simplesmente fazia na roupa. Em casa, acordada, fazia xixi na cama.

Naquele ano, pela primeira vez, fui reprovada na escola. Essas transformações não ligaram o alerta dos meus pais. Aos olhos deles e dos professores, eu era apenas uma menina abalada tentando processar a mudança de escola.

Por volta dos 12 anos, os abusos cessaram. Não sei por quantas semanas ou meses tive que fugir dele e me trancar apavorada no banheiro, mas isso é irrelevante. Basta uma vez para marcar, principalmente uma criança.

Quando eu tinha 21 anos, um câncer levou minha mãe. Ela morreu sem saber o que havia acontecido com aquela menina que tantas vezes encontrou sentada, nas madrugadas, no cantinho do sofá.

Na vida adulta, chamei meu pai e contei tudo. A reação não foi a que eu esperava —quase nunca é—, mas ele procurou o irmão. Primeiro, o abusador negou, mas, depois, "justificou" se valendo do tosco argumento de que "na época não existia isso de pedofilia’’. Ainda disse que, se eu continuasse revirando o passado, me processaria, pois eu estava manchando a reputação dele.

Essas palavras despertaram um furacão de sentimentos e decidi que não me calaria mais. O julgamento e a condenação vieram implacáveis, não para ele, mas para mim, por desenterrar esse defunto.
Na família do meu pai, não somam os dedos da mão os que me defenderam, mesmo de forma discreta e silenciosa. Todos queriam que eu deixasse o passado no passado, mas nem sempre é possível.

Meu único apoio veio da minha companheira de vida, também abusada na infância por um amigo da família. Mas entendi então que eu não precisava da aprovação e menos ainda da piedade das pessoas.

O meu grito de liberdade foi a criação, em 2019, do Movimento Infância Livre de Abusos, o Mila. Hoje, me entendo como sobrevivente. Faço desse meu lugar um veículo para que percebam a necessidade de encarar esse problema.

Em 2021, em estado avançado de Alzheimer, meu pai disse que precisava de uma tesoura. Perguntei para quê e aquele olhar sempre perdido me encontrou, num instante único de lucidez. "Quero cortar o fulano das fotos" (me recuso a pronunciar o nome do abusador). No olhar de arrependimento enxerguei um pedido de desculpas, o que me deixou com o coração quentinho. Nossa "conta" estava zerada. Ele partiu tranquilo poucos dias depois.

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