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40 anos do movimento Diretas Já

Tancredo chamava Diretas Já de campanha necessária, mas lírica

Líder mineiro foi acusado de conspirar contra emenda enquanto construía candidatura viável para a transição democrática

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Plínio Fraga

Jornalista, é autor de “Tancredo Neves, o Príncipe Civil” (Objetiva) e de “Cidadania, a Fome das Fomes” (Mórula)

Antes mesmo da derrota da emenda constitucional que propunha a retomada de eleições diretas para presidente da República, em abril de 1984, o líder mineiro Tancredo Neves (1910-1985) já havia sido diversas vezes acusado de conspirar contra a proposição que tramitava no Congresso.

O coro contra Tancredo se ampliou ao, na semana da votação da emenda Dante de Oliveira, o deputado João Paganella (PDS-SC) reproduzir frase que disse ter ouvido do presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo: "Tancredo Neves é um nome confiável para a conciliação nacional".

O então governador mineiro havia sugerido que um governo de transição, com o presidente com um mandato-tampão, deveria ser o norte a guiar situação e oposição no processo de escolha do sucessor de Figueiredo. Significava que o governo vindouro tinha de manter um pé na canoa da oposição e o outro na da situação, desembarcando assim da canoa popular das Diretas Já —que se mostrava à deriva para quem conhecia a força do rio que atravessava.

Reprodução de página da Folha de 27 de junho de 1984
Reprodução de página da Folha de 27 de junho de 1984, com espaço em branco para foto de Tancredo - Reprodução

Luiz Inácio Lula da Silva foi um dos mais duros no ataque ao líder mineiro. "A proposta do Tancredo Neves não é de transição nenhuma. É uma proposta de transação."

Na véspera da votação, o governo decretou medidas de emergência em Brasília, como censura e suspensão da liberdade de reunião.

O clima estava pesado na capital do país e ruim também em Belo Horizonte. Com a censura dos meios de comunicação que transmitiam de Brasília, milhares de mineiros se reuniram na praça em frente ao terminal rodoviário, na zona central. Deputados pró-diretas ligavam de Brasília para líderes oposicionistas locais com relatos do clima da votação para a multidão.

A Polícia Militar mineira, em tese sob comando de Tancredo, impediu passeatas, forçou a liberação de ruas e prendeu lideranças de apoiadores das diretas. Tancredo estava em Brasília. Ao ser informado da truculência policial, ligou para o comando de segurança determinando que a PM "agisse com moderação". Não a impediu, no entanto, de agir contra os manifestantes.

Derrotada a campanha em defesa das Diretas Já, Tancredo foi chamado de "ambíguo" pelos mais educados e de "traidor" pelos mais exaltados.

Tancredo aplicava na prática seu bordão predileto: "não existe mineiro revolucionário". Tinha estudado países que fizeram a transição da ditadura para a democracia e chegara a uma conclusão, inspirada no marquês do Paraná, conselheiro do Império. "Não há caso de transição do regime autoritário para a democracia sem trauma." A principal tese de Honório Hermeto Carneiro Leão (1801-1856), o marquês do Paraná, era de que o Brasil exercia a reiterada opção de buscar "a conciliação das elites".

Era o caminho que Tancredo percorria silenciosamente. Tentava mobilizar as ruas para a própria candidatura por via indireta, em vez de usá-la para insistir numa causa vista como perdida.

Tancredo, no entanto, não estava disposto a aventuras. Não seria candidato por si, queria ser aclamado. O presidente do PMDB, Ulysses Guimarães, acompanhou silenciosamente, mas com espasmos de contrariedade, a viabilização de Tancredo.

O governador de Minas seguia trilhando caminho próprio, costeando o alambrado que separava aliados e opositores da ditadura.

A realidade política em abril de 1984 parecia indicar que a situação governista, base do governo autoritário, tinha opções eleitorais melhores do que a oposição. Não era tão óbvio que o voto direto conduzisse a oposição ao poder, como hoje se pode imaginar.

O Brasil tinha escolhido seu último presidente pelo voto direto em 1960. Em 18 março de 1984, a Folha publicou os resultados de levantamento eleitoral. "Aureliano é o candidato preferido para ocupar a Presidência", resumia. À época no PDS, o partido de sustentação da ditadura militar, Aureliano Chaves era o vice popular de um presidente impopular, o general Figueiredo.

Aureliano estava à frente com 26,7% das menções espontâneas. Era seguido por Leonel Brizola (PDT-RJ), com 9,4%; por Paulo Maluf, com 4,7%; por Lula, com 3,7% e por Tancredo, com 3,4%. Ulysses Guimarães teve 1,5% .

Candidatos da base de sustentação da ditadura somavam 39,4% das menções espontâneas. A oposição, 20,1%.

Com inflação e desemprego em alta, com o país quebrado pela dívida externa recorde, o governo Figueiredo era avaliado como ruim por 45,2% dos entrevistados. É o cenário que Tancredo trabalhava. O regime ia mal, mas a oposição sozinha não era capaz de derrubá-lo no voto direto.

Na segunda semana de junho de 1983, Tancredo fez ao jornalista Villas-Boas Corrêa sua declaração mais sincera sobre as diretas: "Trata-se de uma campanha singular. Ela não pretende convencer a opinião pública, conquistar adesões. (...) O PMDB está cumprindo o seu dever e agindo com habilidade quando se dirige à opinião pública, sustentando com coerência seu compromisso com as eleições diretas. E uma forma de mantar o partido vivo, atuante e unido. Mas a oposição não pode deixar de montar alternativas mas realísticas. Afinal, a campanha pelas diretas é necessária, mas lírica. E o PMDB necessita instrumentalizar-se para a negociação possível."

Essa é a reprodução do que o Jornal do Brasil publicou em 12 de junho de 1983. Segundo Mauro Santayana, assessor de Tancredo à época, o que o governador disse foi: "...a oposição não pode deixar de montar alternativas mais realísticas", em vez de "alternativas mas realísticas".

Pode parecer discussão sobre filigranas, mas era o embate entre alternativas e a opção realística pela transição negociada. Esse sapato apertado, naquele tempo, só cabia no pé de Tancredo. Pelo talento que tinha de saber que uma vírgula, ou um mas mal interpretado, poderia mudar tudo.

A oposição continuou a realizar comícios pelas Diretas Já. Imaginava que a pressão popular levaria à vitória. Tancredo já estava noutra campanha, a própria.

Em 27 de junho, a Folha, o jornal das diretas, relatou que 100 mil pessoas tinham voltado à praça da Sé para exigir eleição direta. Os editores publicaram no alto da página fotos de Ulysses, Lula, Brizola, Montoro, Richa e Covas, durante o comício da Sé. Deixaram um espaço em branco, com a legenda capciosa: "Espaço para a foto de Tancredo, que não veio ao comício".

Blague genial, quase um poema neoconcreto, mas Tancredo já não cabia numa foto diagramada adequadamente para um coadjuvante. Sete meses depois, seria eleito presidente da República, pela via indireta, com o voto maciço de situação e oposição e apoio de 80% dos brasileiros. Estava sepultado o regime militar, mas aí é outra história.


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