Antigo local de teste nuclear é destino improvável na Austrália

Aldeia aborígene Maralinga recebe turistas após operação para descontaminar a área

Van branca em campo de terra, com vegetação rasteira. Grupo de pessoas ao redor da van e homem afastado, em primeiro plano, com chapéu
Visitantes circulam pela área do antigo complexo militar de Maralinga - Adam Ferguson/The New York Times
Ben Stubbs
The New York Times

Maralinga, uma região de terra árida no remoto deserto oeste da Austrália do Sul, é o único dos antigos locais de testes nucleares no país aberto a turistas. E Robin Matthews é o único guia de turismo nuclear da Austrália.

Os visitantes que chegam a Maralinga, um antigo complexo militar de cerca de 60 quilômetros quadrados, talvez imaginem que seu guia os receberá vestido com um macacão de plástico amarelo e uma máscara de proteção; e se for esse o caso, ficarão desapontados.

Matthews, 65, usa um boné com a aba voltada para baixo sobre os olhos, e um cigarro pende de seus lábios rachados pelo calor. Sua pele, muito bronzeada, está recoberta por toda uma narrativa de tatuagens desbotadas, feitas muito antes que isso tivesse se tornado moda.

“Sim, ainda existe radiação por aqui”, disse Matthews, dirigindo o furgão que nos conduziria aos locais em que os governos da Austrália e do Reino Unido detonaram sete bombas nucleares, entre 1956 e 1963; as bombas deixaram imensas crateras, e envenenaram dezenas dos moradores aborígenes da área e seus descendentes.

Estrada de terra, com vegetação rasteira, vista de um carro. Vê-se um homem por um espelho retrovisor
O guia Robin Matthews leva turistas a Maralinga, que foi local de testes nucleares entre os anos 1950 e 60 - Adam Ferguson/The New York Times

Na época, o governo posicionou centenas de pessoas para servir como ratos de laboratório humanos. Vestindo apenas calções e meias compridas, elas foram colocadas no limite da área de teste. Os efeitos das grandes doses de radiação foram devastadores.

Hoje, após operação multimilionária de limpeza, a radiação oferece pouco risco aos turistas, disse Matthews, a não ser que eles decidam “comer punhados de areia”.

Maralinga, que significa “trovão” no idioma garik, uma linguagem aborígene que se extinguiu, não se parece em nada com um local de turismo comum. É uma região quente e árida e de difícil acesso —fica 1.100 quilômetros a oeste de Adelaide [a capital da Austrália do Sul]. 

Desde que as excursões começaram, em 2016, há dois voos por semana para a aldeia, saindo de Ceduna, a cidade “grande” mais próxima —cuja população é de menos de 3.000 pessoas.

Mas o povo tjarutja, que vive na região de Maralinga, pretende expandir o número de visitantes neste ano.

A Maralinga Tjarutja Administration, que controla o local, vai aumentar o número de voos regulares para a área, expandir as excursões para três dias e trabalhar com o governo da Austrália do Sul em um plano de negócios para atrair mais visitantes, disse Sharon Yendall, a gerente geral da organização.

CIDADE FANTASMA

Apenas quatro pessoas vivem em tempo integral atualmente na aldeia de Maralinga, uma cidade fantasma. Em meio às velhas edificações, ficam alojamentos novos construídos para os turistas, com água quente e wi-fi.

Nos anos 50 e 60, auge da Guerra Fria, o complexo era ocupado por 35 mil militares. Havia uma pista de pouso permanente, na época a mais longa do hemisfério Sul, estradas, uma piscina, acomodações e acesso ferroviário.

Pessoas num campo com grama, céu nublado., Na frente, há uma pirâmide de cimento no qual uma mulher se apoia
Mulher posa para foto ao lado de marco de uma das sete bombas detonadas na extinta aldeia aborígene, no sul da Austrália - Adam Ferguson/The New York Times

O primeiro teste nuclear foi conduzido em setembro de 1956, dois meses antes da Olimpíada de Melbourne. A explosão —tão poderosa quanto a da bomba lançada pelos Estados Unidos contra Hiroshima, no Japão— foi a primeira das sete detonações nucleares que aconteceram na região de Maralinga.

Mas eram os testes ditos “menores” que causavam mais medo. Executados em segredo, eles examinavam de que maneira substâncias tóxicas como o urânio e o plutônio 239 reagiam quando explodidas ou queimadas. Para garantir a segurança dos turistas na área, ela foi limpa por cientistas especializados em radiação, ao custo de US$ 77 milhões (R$ 262 milhões).

Em uma das áreas que os turistas podem visitar há 22 poços que abrigam resíduos nucleares, cada qual com pelo menos 15 metros de profundidade e revestido de concreto reforçado, para impedir que radiação escape.

O local parece um jardim recentemente aparado, se estendendo por centenas de metros em um círculo quase perfeito. Espalhados pela areia vermelha do deserto há estilhaços metálicos. 

Excetuados alguns camelos selvagens que circulam na área, o silêncio e a ausência de movimento predominam.

Em 4 de outubro de 1956, uma “mina nuclear” foi detonada aqui, criando uma cratera de 42 metros de circunferência e 21 metros de profundidade. A reação atômica resultante demorou só uma fração de segundo, mas seus efeitos sobre uma família local durariam décadas.

No começo de 1957, Edie Millpuddie e sua família atravessavam as planícies do Grande Deserto de Victoria, quando precisaram de um alojamento para a noite. “Encontraram um grande buraco no qual a terra ainda estava quente”, disse Matthews.

“Eles beberam água da chuva, que encontraram lá no fundo, e acenderam uma fogueira. Todos os coelhos da área pareciam desorientados, e por isso encontrar algo para jantar foi bem simples; e depois a família se acomodou na cratera para dormir.”

Duas semanas depois, Edie sofreu um aborto espontâneo. Mais tarde, os filhos que viria a ter nasceram todos com “deformidades físicas e mentais”, disse Matthews. “Tudo isso aconteceu bem aqui onde estamos.”

Os sobreviventes das explosões, seus filhos e netos, sofreram de catarata, doenças sanguíneas, artrite, câncer de estômago e defeitos congênitos. Na década de 1980, uma comissão oficial que estava investigando os testes concedeu a Millpuddie uma indenização de US$ 60 mil (R$ 204 mil).

Não houve pressão ou escrutínio da mídia sobre o que ocorreu em Maralinga, ao menos não até a década de 1970, quando as pessoas lesionadas nos testes vieram a público e alguns jornalistas e políticos começaram a estudar de forma mais crítica os testes e o sigilo que os cercava.

Matthews visitou Maralinga pela primeira vez em 1972. Sua mulher, Della, é parte do povo anangu, e após a descontaminação da área eles foram convidados a se tornar zeladores de Maralinga.

Ele adoraria que moradores aborígenes o substituíssem como guias em Maralinga, mas compreende que não queiram fazê-lo. “Trazemos nossos filhos e netos aqui para explicar o que aconteceu”, ele disse. “Essa é a terra deles e de seus ancestrais.”

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