'Grande Sertão: Veredas' é um tesouro para ser lido também com o ouvido

Ao fim do livro, a vontade é enxergar pessoalmente o que Rosa viu de grandioso e mítico naquele universo

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São Paulo

Temos aqui uma joia, mas alguns acharão se tratar de um catatau cascudo e intransponível. Bobagem, não é para ter medo de "Grande Sertão: Veredas".

Silviano Santiago, um dos principais críticos literários em atividade no país, usa a seguinte metáfora para falar do surgimento do romance de Guimarães Rosa, em 1956: o trenzinho caipira da literatura brasileira vinha apitando e soltando fumaça, quando de repente desabou um pedregulho nos trilhos. Talvez por isso o livro possa intimidar leitores menos assíduos.

No romance, Riobaldo conta sua saga pelo sertão. Narra como entrou em um bando de jagunços, participou de lutas sanguinolentas e buscou vingança. Revela também seu amor por Diadorim, um dos membros do bando e dono de um segredo (se você deu sorte de chegar até 2018 sem saber qual é, melhor não estragar a surpresa aqui).

Com idas e voltas no tempo, o jagunço se detém para refletir sobre o mal, o amor, a vingança, a guerra, o sagrado —e, em especial, sobre a existência de Deus e do Diabo. Ele fez um suposto pacto com o Capiroto e quer crer que o Cramulhão não existe.

Contudo, é bom lembrar que literatura não é o que se conta, mas o como se conta —e para isso Rosa criou um idioma próprio. Não é só a alta densidade poética do texto, mas a própria ortografia e a sintaxe que são diferentes da linguagem comum.

Para ficar em um exemplo simples, ele escreve "dansar" em vez de "dançar". Podemos supor o motivo: o "s" é uma letra que rebola, enquanto o "ç" está fincado no chão.

O leitor vai se deparar com uma série de palavras inventadas, construídas por vezes a partir da mistura de vários idiomas, ou tão antigas que nem parecem de verdade. Rosa tentou reconstruir o falar da gente de sua Minas Gerais, mas criou uma nova língua.

No primeiro momento, você pode estranhar esse português tão diverso —mas logo se acostuma e vai querer ler devagar para não acabar rápido. Como Rosa estava atento à musicalidade de sua frase, ajuda dizer o texto em voz alta. "Grande Sertão: Veredas" é para ser lido também com o ouvido.

Para quem visita o sertão, a história de Riobaldo servirá como um novo par de óculos —ao fim do livro, a vontade é ver pessoalmente o que Rosa viu de grandioso e mítico naquele universo.

Será preciso conhecer as veredas, as boiadas, os buritis —com sorte, ainda dá para cruzar com o manuelzinho-da-crôa, pássaro favorito de Diadorim, em pleno voo.

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