Colômbia caribenha mistura pescados, raízes e tradições como a pasta de gergelim

Cozinha tem tradições como arepas de ovo e 'ajonjolí', macerado de gergelim; chef Leonor Espinosa quer preservar tradições da região

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Abbie Kozolchyk
The New York Times

Em uma pequena cidade de praia colombiana, uma chefe de cozinha famosa em todo o mundo estava discorrendo poeticamente sobre uma receita local de pasta.

Leonor Espinosa –que tinha acabado de ser selecionada como a melhor chefe de cozinha feminina do planeta em 2022 pela World’s 50 Best, ranking controlado por um gigante da mídia britânico— disse que a pasta de gergelim conhecida localmente como pasta de "ajonjolí" era uma das muitas receitas da região que iam além do sabor, e que eu em breve descobriria o motivo.

Ceviche de camarão com banana-da-terra, no restaurante El Canto de la Caracola, em Rincón del Mar
Ceviche de camarão com banana-da-terra, no restaurante El Canto de la Caracola, em Rincón del Mar - Federico Rios/The New York Times

Fui a Rincón del Mar, a três horas de carro da cidade de Cartagena, para me encontrar com Espinosa em sua terra natal. Vale acrescentar que Espinosa agora vive em Bogotá, onde o seu restaurante, Leo, vem acumulando elogios. Mas as raízes dela estão na região caribenha do país, onde ela viveu a maior parte de sua infância.

Agora, a chefe de cozinha retorna sempre que pode a fim de conduzir laboratórios: oficinas patrocinadas pela sua fundação, Funleo, que reúnem cozinheiros de comunidades muitas vezes esquecidas e desprovidas de recursos, a fim de preparar pratos locais e catalogar e preservar o maior número possível de ingredientes, receitas e técnicas tradicionais.

Eu não estava lá para participar (as oficinas estão abertas apenas para os cozinheiros locais convidados), mas sim para pedir orientação a Espinosa. Depois da ascensão muito alardeada da chefe de cozinha colombiana ao trono da culinária, eu percebi quão pouco sabia sobre o lugar de onde ela veio: uma área do Caribe que fica bem isolada do movimentado corredor Cartagena-Barranquilla.

Por isso, contatei a fundação e, depois de conversar com seu diretor, desenvolvi um plano: me encontrar com Espinosa durante uma das oficinas que ela comanda na região, obter informações dela sobre a área, e depois aproveitá-las para passar alguns dias por lá, viajando e comendo.

Nossas conversas me ofereceram um mapa culinário, que me conduziu em uma jornada que passou por grelhas à beira-mar e uma ilhota repleta de palmeiras, até chegar a uma cidadezinha de casas rústicas com tetos de palha, tudo isso perfumado pelo coco, alho, mandioca, queijo e, claro, gengibre da culinária local.

Ao sentir o cheiro da comida grelhada e ouvir a voz rouca de Espinosa vindos da praia, eu sabia que tinha chegado ao local de sua oficina, no Hostal Arrecife, em Rincón del Mar bem em tempo.

"Observe que o polvo parece completo", ela estava dizendo em espanhol para vários espectadores, em uma área arenosa mas protegida pela sombra que Espinosa transformou em cozinha de demonstração à beira-mar.

Reconheci a voz dela por tê-la assistido em vídeo, embora ainda não tivéssemos nos encontrado pessoalmente. Um momento depois, lá estava eu, ao lado dela e do polvo. "Se você remover os tentáculos", ela continuou, "você vai massacrar o polvo".

Considerando que o animal estava claramente morto, me perguntei o que exatamente eu não estava entendendo, mas o mistério não durou. Curvando-se em direção ao polvo e pregando profundo respeito pelos ingredientes que cada cozinheiro usa, ela disse: "Temos que prestar homenagem a eles. Não podemos massacrá-los, tirando-lhes o sabor".

Em seguida, durante nossa primeira conversa individual, quando o grupo estava em um intervalo, não me surpreendeu que Espinosa relembrasse os sabores de sua juventude com reverência e ritmo que normalmente vemos reservados aos mantras. "‘Ají dulce, yuca, ñame’", ela entoou, evocando visões de chiles, mandioca e inhame. Ela parecia uma figura quase monástica em seu conjunto branco e creme, que contrastava com o tecido verde limão da rede em que estava deitada.

Eu por acaso tinha acabado de experimentar um pouco de mandioca local em um cheesecake de coco– uma mistura reveladora de doce e salgado. Mas, à medida que Espinosa continuava discorrendo sobre as comidas locais mais amadas, poucas outras me pareceram familiares e a maioria dos nomes tinha algo de mágico– e nenhum mais do que o "ajonjolí".

O nome bastaria para me capturar, mas havia também a ideia de sementes de gergelim torradas imbuídas de um terroir tropical rico e moídas à mão para fazer uma pasta, de acordo com uma "tradição culinária que está se perdendo nas cidades, mas que ainda pode ser sentida nas zonas rurais", disse Espinosa.

Pude fazer um teste inesperado algumas horas mais tarde no Dos Aguas Lodge, o resort ecológico de praia onde tinha reservado um quarto para minha estadia e excursões locais.

Depois de um programa visual duplo alucinante –observar aves ao pôr-do-sol, ao longo da linha costeira de uma ilha submersa a ponto de deixar só as pontas das árvores de fora da água, e em seguida um mergulho em uma lagoa bioluminescente– voltei para o hotel esfomeada. E, na lousa da cozinha, encontrei o nome "ajonjolí", em forma de um sorvete caseiro com infusão de gergelim, acompanhado por um brownie de cacau colombiano.

Embora aquela claramente não fosse a pasta pura e não adulterada de gergelim que era meu objetivo descobrir, mesmo assim era um petisco perfeito para antes de dormir, e um pretexto interessante de conversa com Dania Bianuni, uma das fundadoras do Dos Aguas, a quem eu tinha perguntado sobre o prato.

Ela explicou que, como relativos recém-chegados a Rincón del Mar, e na esperança de não invadir o território dos restaurantes tradicionais da comunidade, os cozinheiros do hotel geralmente optavam por preparações pouco ortodoxas dos alimentos básicos locais.

No dia seguinte, meu mapa culinário me enviou para as costas sombreadas por palmeiras da Isla Tintipán –a cerca de 40 minutos da costa–, em busca de arepas de "huevo", um invólucro de massa frita contendo ovos que é praticamente um sinônimo da culinária caribenha da Colômbia.

Costa do mar, na cor turquesa, com pequenas baías de pedra
Ilha Tintipán, na costa da Colômbia, onde servem arepas de ovos - (Federico Rios/The New York Times)

Foi-me garantido que todos os capitães de barcos locais conheciam um restaurante chamado Rocio, mesmo aqueles que ainda chamavam o lugar pelos nomes dos antepassados do proprietário, já que a casa era propriedade da família há gerações, na ilhota vizinha de Santa Cruz del Islote.

Embora Tintipán fosse linda a ponto de desviar minha atenção de quase qualquer outro assunto –com águas de um azul cintilante varrendo as areias brancas da praia e manguezais exuberantes e navegáveis– eu me mantive firme em minha busca de uma arepa de "huevo". Fritas na hora, esponjosas ao ponto perfeito e muito espessas, minhas arepas eram um claro desafio à modéstia de sua apresentação (o empregado que me serviu descreveu o produto como "su arepita").

Temperei o petisco com uma pitada de sal marinho e um pouco de "suero" (um condimento à base de soro de leite parecido com o labneh, mas menos denso e de sabor menos pronunciado), e depois comi como se ninguém estivesse me vendo, porque ninguém estava. Havia coisas muito mais interessantes a ver na praia, onde multidões de visitantes colombianos dançavam ao som de ritmos incompatíveis que vinham de alto-falantes rivais.

Terminei a refeição com um caramelo de coco, uma sobremesa em porção pequena que é satisfatoriamente rica e mastigável, mas não doce demais, e retornei ao continente, onde imediatamente senti vontade de reservar uma vaga na aula de como fazer "arepas" que o Dos Aguas oferece na casa de um perito local. Mas a estrada aberta estava me chamando, ou pelo menos meu motorista, que telefonou para confirmar se eu queria ser apanhada mais cedo na manhã seguinte.

Ziguezagueamos pelas savanas da região caribenha, e cerca de três horas a sudeste de Rincón del Mar chegamos a San Luis de Sincé, uma cidadezinha com pelo menos quatro grandes amores: Espinosa, cuja família vem de lá; o escritor Gabriel García Márquez, que viveu lá parte de sua infância; o clarinetista e compositor Juan Madera Castro, que nasceu lá; e o "ajonjolí" – ainda que não necessariamente nessa ordem.

A casa da família de Espinosa ainda ocupa lugar de destaque na praça central da cidade, tal como uma casa de infância de García Márquez, cujos fãs às vezes afirmam que San Luis de Sincé inspirou a cidade fictícia de Macondo, no romance "Cem Anos de Solidão".

A Casa de la Cultura de Sincé tem uma instalação fascinante sobre o autor, bem como sobre Madera, cuja composição mais famosa, "La Pollera Colorá", é basicamente o hino nacional extraoficial da Colômbia. Mas por mais que a imersão no folclore local tenha me fascinado, eu precisava comer alguma coisa.

Espinosa tinha me instruído a procurar "ajonjolí" em casas particulares, uma experiência que me fez lembrar de comprar "chicha", uma bebida fermentada de milho produzida nos Andes peruanos, em casas identificadas por pequenas bandeiras. Mas em Sincé, as grandes e reluzentes placas de "ajonjolí aqui!" espalhadas à beira das estradas tornaram minha busca ainda mais fácil.

A casa de telhado de palha que escolhi tinha paredes pintadas de verde-periquito, por dentro e por fora. Talvez eu estivesse sob a influência de García Márquez, mas as vibrações do realismo mágico eram difíceis de ignorar —especialmente quando me lembrei de algo que tinha ouvido falar sobre os vendedores de "ajonjolí": só os abençoados detentores de uma mão boa eram capazes de preparar a pasta de gergelim.

A mulher que estava à porta me garantiu que descendia de uma longa linhagem de pessoas com boas mãos e, no momento em que experimentei uma amostra, servida em um vidro reaproveitado de café instantâneo, eu imediatamente acreditei que ela estava dizendo a verdade

Prato do restaurante El Canto de la Caracola, em Rincón del Mar, na Colômbia
Prato do restaurante El Canto de la Caracola, em Rincón del Mar, na Colômbia - Federico Rios/The New York Times

Por sorte, tive tempo para a digestão no caminho para Galeras –uma cidade arborizada conhecida pela pecuária, cerca de 25 km a sudoeste, um trajeto de 45 minutos nas estradas lamacentas da savana. A próxima parada no mapa era o restaurante Donde Mingo, onde me disseram que eu não podia deixar de pedir o "mote" da casa, uma sopa de inhame com queijo que por si só já valeria a viagem.

Usando como base um creme de vários inhames caribenhos, o chefe Domingo Mingo Ramos acrescenta queijo abundante, "suero", verduras locais e um refogado de alho e cebola.

Parei para tomar fôlego na metade da minha terrina e, na esperança de guardar espaço para mais um pouco da sopa, caminhei até uma das pontas da sala de jantar, uma área sem paredes e com telhado de palha, onde um flautista tradicional, três percussionistas e um homem selvagem tocando maracones (imagine maracas tamanho extragrande) estavam fazendo toda a freguesia de almoço cantar e dançar.

Dancei até sentir que havia aberto espaço suficiente para continuar com os próximos pratos: berinjela ao alho, arroz de coco e aguardente de ervas.

Infelizmente, não sobrou lugar para a sobremesa, mas me consolei sabendo que voltaria para os festivais de janeiro simultâneos que a cidade realiza: um para celebrar as alfarrobas e tudo que se relaciona a elas, e o outro, os Cuadros Vivos –ou pinturas vivas–, em que os habitantes locais, fantasiados, maquiados e produzidos, se tornam as instalações de arte ao ar livre.

Ao contemplar o meu frasco de "ajonjolí" e os outros doces de Sincé que meu motorista e eu saborearíamos até o final da viagem, os meus pensamentos retornaram àquele primeiro encontro com Espinosa em Rincón del Mar: É preciso respeitar os ingredientes, ela disse.

Minha curta passagem pelo lugar que alimentou a famosa culinária da chef esteve repleta de sabores, mas, para respeitar plenamente todos aqueles ingredientes, percebi que teria de regressar com muito mais tempo.

Tradução de Paulo Migliacci

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