É editora de 'Mundo' e foi correspondente em Nova York, Genebra e Washington. Escreve às sextas sobre séries de TV.
'Making a Murderer' trata realidade como ficção
No último dia 7, a Casa Branca se deu ao trabalho de explicar que não poderia reabrir o caso de Steven Avery, o dono de um desmanche no Estado de Wisconsin que cumpre pena por assassinato, por se tratar de um crime estadual, sobre o qual a clemência do presidente não vale.
A carta respondia a 151.732 signatários de cinco petições -abertas no site do governo americano para solicitações do tipo- pedindo que o homem de 53 anos de Manitowoc fosse perdoado ou que seu julgamento fosse revisto.
Netflix/Divulgação | ||
Foto tirada pela polícia de Steven Avery apóssua primeira prisão, retratada na série documental "Making a Murderer", da Netflix |
Avery é o protagonista de "Making a Murderer", série documental que a Netflix pôs no ar em dezembro e que, desde então, é alvo de debates acalorados nas mídias sociais e tradicionais.
As paixões -e o sucesso incomum para um documentário, ainda mais um de dez horas- são aguçadas pela estrutura inspirada na ficção, com momentos de clímax, trilha sonora cuidadosa e um script que deixa muito claro quem são os mocinhos e os bandidos.
Da forma como as documentaristas Moira Demos e Laura Ricciardi a montaram, "Making a Murderer" cria uma empatia imediata entre espectador e protagonista, um homem cujo histórico de injustiça sob o sistema jurídico nos é apresentado em meio a imagens de família e declarações de desabafo extraídas de entrevistas e telefonemas familiares gravados na prisão.
Esse efeito, que ganhou força a ponto de mover gente a enviar petições à Casa Branca, deveria ser colateral, mas não é.
"Making a Murderer", filmada ao longo de dez anos, não é um libelo de defesa de Avery -em nenhum momento fica clara sua culpa ou inocência no assassinato pelo qual cumpre pena.
É um libelo sobre as deficiências do sistema jurídico americano, e um enorme "outro lado" de um julgamento fadado desde o início a resultar em condenação.
Seus dez episódios expõem depoimentos desconcertantes, manipulações canhestras de provas e testemunhas e outros comportamentos pouco ortodoxos da polícia local e funcionários da Justiça que permitiram perpetuar falhas jurídicas e aniquilar a presunção de inocência a que o réu, pobre e ignorante, teria direito (daí talvez o documentário ter ressoado tanto no Brasil).
O que, obviamente, não prova que o réu é inocente.
Habituados a maratonas de séries e tão negligentes com histórias reais que façam pensar, acabamos assistindo à realidade que há em "Making a Murderer" como se fosse ficção.
Cabe um debate se documentário é um gênero em si, e não uma forma de jornalismo, no qual o equilíbrio precisa ser uma meta.
E cabe, sobretudo, uma reflexão sobre esses tempos em que tomamos apenas uma parte da informação -a que mais nos satisfizer-, damos-lhe peso de verdade absoluta e por ela brigamos cegamente.
Os dez episódios de "Making a Murderer" estão na Netflix
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