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O
direito de sonhar
Ainda
adolescente, muito antes de se tornar um criminoso, Fernando
Dutra Pinto exibia o perfil de bom menino. Temente a Deus,
dava aulas sobre a Bíblia a jovens, convencido de que
a salvação da alma passava pela fé evangélica.
Com idades
semelhantes e mesma crença religiosa, ele e Patrícia
Abravanel poderiam ter-se encontrado num templo. Por causa
da distância econômica, dificilmente teriam ficado
amigos, mas, pelo menos durante o culto, teriam experimentado
um grau de cumplicidade que os teria tornado, naquele preciso
instante, iguais. Acabaram encontrando-se no cativeiro - Fernando
sequestrador, Patrícia refém.
A genialidade
de comunicador de Silvio Santos jamais produziria um drama
familiar, protagonizado por dois jovens, que atraísse
tanta audiência; pareceria exagerado até mesmo
no enredo de "O Direito de Nascer", novela em exibição
no SBT. Afinal, só na ficção um sequestrador,
num dia, raptaria a filha e, uma semana depois, faria do pai
refém no mesmo local do sequestro.
Através
desse grandioso show de realidade, vimos uma das melhores
alegorias da insegurança das cidades. E, na separação
dos caminhos de Fernando e Patrícia, o melhor símbolo
disponível do perigo da exclusão social.
Entre
o bom menino reverente a Deus, disposto a pregar a palavra
do Evangelho, e o criminoso, está o adolescente frustrado,
que, por ironia, sonhava em ser advogado - aquele que, por
definição, deveria honrar as leis.
De acordo
com os testemunhos dos familiares, Fernando desandou quando,
sem emprego, desistiu do direito de sonhar em cursar a faculdade.
Desde então, drenou sua inteligência para o crime.
Como nesse
enredo há uma enxurrada de símbolos que parecem
ter saído da mente de um novelista, não causa
surpresa que Patrícia tenha sido sequestrada justamente
quando ia para a faculdade, espaço em que arquiteta
seu projeto profissional.
Fernando
é um dos principais vírus destrutivos da sociedade:
representa os milhões de jovens frustrados, diariamente
convidados a abandonar o direito de sonhar, barrados pela
incapacidade de ingressar ou prosperar no mercado de trabalho.
Há
uma série de causas para a violência - talvez
a principal seja a marginalização da juventude.
Basta ver os números.
Na região
metropolitana de São Paulo, o desemprego entre jovens
de 15 a 24 anos cresceu sete vezes no período de 1979
a 2000. É muito mais do que a expansão do nível
geral de desemprego, que, no mesmo intervalo, saltou de 5,6%
para 8,2%, segundo o IBGE, e, neste ano, está pouco
abaixo de 7%. A população cresceu 70% e, ainda
por cima, a renda por habitante subiu. A taxa aumentou cerca
de oito vezes.
Resumindo:
em cada três jovens, um está desempregado. Cria-se,
assim, mão-de-obra excedente para a criminalidade.
Para agravar
a tensão social - e, mais uma vez, Fernando é
uma notável síntese -, centenas de milhares
de jovens conseguem chegar ao ensino médio, o antigo
colegial, e muitos deles acreditam na possibilidade de conseguir
bons empregos e até de cursar uma faculdade.
A um aumento
de expectativa sobre o sucesso individual corresponde, inexoravelmente,
uma maior frustração coletiva. Quanto mais se
espera do futuro, maior é o risco de frustração.
Daí
Patrícia ter acertado ao dizer, já livre do
cativeiro, que Fernando, seu algoz, era uma vítima
da pobreza e da dificuldade de acesso à educação
- ao mesmo tempo em que criticava o pai pela falta de sensibilidade
social.
Terminando
o enredo ficcional, imperou o cotidiano da realidade: Fernando
foi para a cadeia, com seus sonhos definitivamente enterrados,
Patrícia voltou para a faculdade e Silvio retomou as
gravações do "Show do Milhão",
voltando a vender sonhos e ilusões.
E a única
relação de Fernando com a advocacia passou a
ser a sorte de ter um advogado que o ajude a diminuir sua
pena.
PS - Admiro
em Silvio Santos a garra do migrante que lutou, prosperou
e gerou empregos - é, em muitos aspectos, uma notável
e inspiradora trajetória de vida. Mas, de certa forma,
o empresário é vítima de si mesmo, já
que, sempre de olho nos pontos de audiência, não
usa seu poder de comunicação em favor da educação
da sociedade. Certa vez, perguntaram-lhe se um empresário
de comunicação não deveria "levar
cultura ao povo". Sua resposta: "Temos de dar ao
povo o que o povo quer. Se for mulher com pouca roupa, será
mulher com pouca roupa". Mais adiante, acrescentou: "Quem
dá ibope pode mostrar o que quer". Em toda a sua
vida de TV, ele nunca deu tanto ibope quanto no episódio
do sequestro - e, certamente, não era o que gostaria
de mostrar.
Vindo
de uma família de classe média de imigrantes
gregos, para ascender de camelô a empresário,
Silvio Santos também teve sonhos. Certamente não
teria prosperado caso seus pais não lhe tivessem garantido
educação. Quem sabe se, com aquela criatividade
e inteligência, um Silvio frustrado, marginalizado,
vivendo numa sociedade violenta e sem o direito de sonhar,
tivesse sido um Fernando.
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