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Espelho,
espelho meu
Para aproveitar
o gancho do Dia dos Pais, queria apresentar nesta coluna a
história de um personagem que mostrasse a divisão
entre família e trabalho, os obstáculos para
cuidar dos filhos e prosperar profissionalmente, o sentimento
de culpa, até pouco tempo atrás só das
mulheres, por ficar ausente de casa - a sensação,
enfim, de que, por sermos pais em débito emocional,
somos indivíduos ruins.
Mas a
melhor história que encontrei, provocado pela reportagem
de Ricardo Kotscho sobre a ex-faxineira que, na sexta-feira
passada, se formou em pedagogia pela Universidade Estadual
de Campinas, foi a de uma mãe. Sem condições
de ser criada pelos pais, viveu com os avós. Aos 13
anos, teve de interromper os estudos por falta de dinheiro,
estacionou na quarta série e só voltou à
sala de aula aos 21 anos.
Colocou
na cabeça que, apesar de sua defasagem, iria estudar
na Unicamp. Nada fácil para quem vem da escola pública
e muitíssimo menos fácil para quem vem de um
supletivo. Uma colega de trabalho, em tom de deboche, desdenhou
quando ouviu aquele projeto: "Você não tem
espelho em casa?".
Para chegar
lá, Marinalva Cuzin fez o que pouquíssimos fariam.
Combinava dois empregos com os estudos. Na condição
de faxineira de um centro acadêmico que lhe bancava
o cursinho, chegava de madrugada em casa e, mesmo assim, ainda
encontrava tempo para ler. Nos finais de semana, dedicava-se
ao inglês.
Por causa
desse estresse, perdeu o marido, incomodado com a mulher fora
de casa - e teve de abandonar dois de seus três filhos,
que, ressentidos, preferiram morar com o pai. Ao sair de casa,
acompanhada da filha, não tinha onde morar e viu-se
obrigada a invadir o dormitório estudantil, do qual
foi despejada. Teve de implorar, expondo sua história
de vida, por um teto. "Lavava roupa no chuveiro",
lembra.
Convidei-a
para almoçar a fim de ouvir mais detalhes de sua história.
Perguntei-lhe o que sentira ao deixar a casa e os filhos -
afinal, ela é uma educadora. "Você se achava
uma mãe ruim?", cutuquei. Respondeu: "Acho
que sou uma mãe feliz. E por isso sou uma boa mãe".
Disse
que, se tivesse ficado em casa, lavando e passando roupa,
preparando comida, limpando a casa, cuidando de criança,
não teria perseguido seu sonho. Viraria uma mulher
frustrada, irritada, ressentida. "Vou sempre ser lembrada
pelos meus filhos como alguém que batalhou pelos seus
sonhos, custassem o que custassem. Sou uma mãe feliz
porque hoje sou uma mulher feliz."
Não
teria saído de casa se o marido, um zelador de prédio
residencial, conseguisse administrar o progresso intelectual
da mulher, o que é complicado para a maioria dos homens
- ricos ou pobres.
Na sexta-feira
à noite, foi ela quem fez o juramento em nome de sua
turma, porque resume vários símbolos. O principal
deles: alguém que cresceu porque estudou e, agora,
ajuda mais gente a estudar - atualmente, ela dá aulas
de alfabetização na prisão.
Heroína
contemporânea, Marinalva é hoje um espelho para
as camadas populares. A idéia de cursar uma boa faculdade
está entrando com os dois pés na agenda dos
excluídos, o que se vê em movimentos como o dos
"sem-faculdade". Ou em projetos que querem destinar
cotas das vagas em universidades federais e estaduais a alunos
que saem de escolas públicas. Ou, ainda, nas centenas
de milhares de brasileiros que, em favelas e em regiões
periféricas, frequentam cursinhos gratuitos pré-vestibular
mantidos por professores voluntários.
Poucas
coisas são mais reveladoras desses novos tempos do
que a reportagem, publicada hoje (12.08.01) pela Folha, sobre
o movimento dos "sem-tela". Disseminam-se, em morros,
favelas, prisões, bairros periféricos e escolas
públicas, experiências que tentam minorar a divisão
digital. Ficar fora dos benefícios da era digital é
visto, cada vez mais, como ficar fora do emprego.
É
a aposta dos alunos de uma escola pública que, na terça-feira
passada, em São Paulo, ensinavam seus professores a
usar o computador. Foram os estudantes que, num movimento
batizado de "inconformática", abriram o laboratório
de informática da escola, que estava fechado por falta
de gente que soubesse usá-lo.
A tradução
política é simples e óbvia: os governantes
vão ser pressionados, sem parar, a abrir vagas para
esses candidatos de Marinalva e a melhorar as escolas públicas
de ensino médio, onde estão quase 7 milhões
de estudantes - gente mais esclarecida e, portanto, capaz
de fazer mais barulho.
PS - No
almoço, Marinalva contou fazer parte de seus planos
escrever um livro sobre a sua vida. Já tem título:
"Espelho, espelho meu".
E-mail
- gdimen@uol.com.br
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