As
flores do esgoto
Ninho
do poder federal, o Plano Piloto de Brasília é
o paraíso do trabalhador brasileiro: lá a renda
média mensal de uma família chega a 24 salários
mínimos, totalizando R$ 3.624. Pelo menos 20% delas
ganham acima de R$ 5.000, mais do que recebe a imensa maioria
dos professores-doutores.
Em Salvador,
a renda média familiar não passa de seis salários
mínimos (R$ 906). A comparação talvez
seja ruim; afinal, Salvador está no empobrecido Nordeste,
repleto de analfabetos e semi-analfabetos.
Vejamos,
então, a situação da cidade de São
Paulo, onde se produz uma fatia expressiva da riqueza brasileira.
Confrontada com a de Brasília, também não
é das melhores.
Mesmo
que se acrescentasse a renda média de uma família
soteropolitana à de uma paulistana (R$ 2.416), ainda
faltariam R$ 302 -dois salários mínimos- para
que fosse atingida a média de Brasília.
Detectadas
por uma pesquisa em 12 capitais, conduzida pelo (Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada), essas disparidades
são a versão monetária, quase uma alegoria,
de uma distância ainda maior -a distância cultural
e espiritual entre Brasília e o restante do país.
*
Borbulham,
no país, bilionários investimentos em áreas
de alta tecnologia, vêem-se experiências comunitárias
promovidas por entidades não-governamentais, assiste-se
ao crescimento veloz dos níveis de escolaridade e de
educação nas empresas, acompanha-se a propagação
dos meios de comunicação, especialmente da Internet
e das TVs por assinatura.
Influenciados
pelo Ano Internacional do Voluntário, os meios de comunicação
revelam inspiradoras histórias de cidadãos anônimos
que tecem tramas de solidariedade e, na prática, atuam
como homens públicos. É uma notável agenda
positiva.
Mas o
que move e comove o Plano Piloto é o binômio
sucessão-corrupção. Fala-se, basicamente,
sobre quem vai ser o candidato eleito daqui a dois anos e
sobre quem, acusado de alguma bandalheira, vai ser a próxima
vítima das manchetes dos jornais.
Além
de repugnante, o espetáculo, de tão repetitivo,
é aborrecedor, quase uma novela sem fim.
*
A criatividade
brasileira afasta-se de Brasília e prospera nas cidades,
os grandes laboratórios de experiências de políticas
públicas. Recife, por exemplo, centro histórico
deteriorado e abandonado, passou por uma reforma e prepara-se
para abrigar um "porto digital"-transformou-se em
espécie de incubadora de empresas de alta tecnologia.
É o que se planeja também para os armazéns
portuários de Salvador -uma forma de mesclar tecnologia
com lazer.
Coube
a Porto Alegre reinventar o modo como se fazem orçamentos
públicos, ao integrar a comunidade nas decisões
sobre o destino dos recursos.
Dois dos
grandes programas sociais do país, encampados depois
pelo governo federal, foram germinados por prefeitos: o Bolsa-Escola
e o Médicos de Família.
*
Um dos
melhores exemplos dessa criatividade saiu literalmente do
esgoto. E tudo começou com flores.
Desde
o final de 1999, empresas privadas e autoridades estaduais
uniram-se para plantar árvores e flores em uma das
paisagens mais horripilantes da cidade de São Paulo:
as marginais do rio Pinheiros, um esgoto a céu aberto.
À
medida que a paisagem ia mudando, mais empresas se dispunham
a embelezar trechos da marginal. Por causa da estiagem, foi
instalada, nas margens, uma pequena estação
de tratamento de água para alimentar as mudas. Funcionou.
Obteve-se água de boa qualidade.
Mas não
fazia muito sentido um jardim para adornar um esgoto, com
seu odor ininterrupto. Brotou, ali, uma obra de engenharia
social para despoluir, sem dinheiro público, o Pinheiros.
Despoluídas,
as águas estão liberadas para rumar para uma
represa e, em seguida, chegar a uma hidroelétrica,
aumentando a oferta de energia.
Um negócio
de ocasião: a empresa que despoluir terá o direito
de comprar energia por um preço mais baixo. E, ainda
por cima, irá faturar no marketing ecológico.
*
Dessa
engenharia social nasceu a possibilidade de uma espantosa
transformação: o rio virar espaço de
lazer e, já no próximo ano, pessoas banharem-se
em suas águas. O secretário estadual do Meio
Ambiente, Ricardo Tripoli, comprometeu-se a mergulhar no Pinheiros,
ato hoje digno de um tresloucado suicida.
Entre
os dois esgotos - o de Pinheiros, que pode transformar-se
em um jardim, e o de Brasília, que talvez se torne
mais uma CPI - tem-se a medida da distância, ou da proximidade,
que assume diante dos cidadãos.
*
PS - Por
falar em criatividade, o psicodrama coletivo de Marta Suplicy,
que pôs os paulistanos encenando seus problemas, virou
motivo de deboche, especialmente entre formadores de opinião.
Foi atacado por ser uma maluquice fútil e uma encenação
mercadológica para satisfazer o apetite de flashes
da prefeita, no seu deslumbramento com o poder.
Discordo. São Paulo está carente de sinais de
acolhimento público e de espaços para convivência.
Aquelas encenações tiveram o dom de transmitir
a sensação de que a cidade, em sua frieza e
individualismo, pode ser melhor. Governar não é
só fazer obras, é também compartilhar
sonhos.
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