Sempre
estudaram em escolas públicas e viraram heróis
Amos Luciano
Carneiro, 24 anos, nasceu em uma família pobre, seus
pais não têm o primeiro grau completo, estudou
sempre em escola pública e passou no vestibular de
engenharia química da Unicamp, em São Paulo.
Não poderia imaginar que, ao fazer o provão,
no ano passado, entraria para a história da faculdade.
Ao transpor
as probabilidades estatísticas da educação
brasileira, ele figura numa lista de heróis que deverá
ser divulgada amanhã.
Depois
de passar pela peneira universitária, ingrata especialmente
com quem frequentou escolas públicas, Amos driblou
mais uma vez a adversidade: conseguiu tirar o primeiro lugar
-entre os alunos de engenharia química de todo o país-
no provão do ano passado.
Sem dinheiro,
aprendeu desde cedo a ir a bibliotecas e estudava, em média,
cinco horas por semana, além do horário das
aulas. Fez da Internet seu principal meio de informação.
Planeja, agora, dedicar-se a cursos de aperfeiçoamento
e especialização.
Não
está sozinho. Na lista dos primeiros colocados de cada
curso avaliado pelo provão no ano passado, além
de Amos, aparecem mais seis estudantes que só frequentaram
escolas públicas. Eles tiraram as melhores notas nas
avaliações dos cursos de jornalismo, matemática,
veterinária, odontologia, engenharia mecânica.
Em física, deu empate -e os dois estudantes também
saíram de escolas públicas. Dois deles, vitoriosos
em matemática e jornalismo, pediram que seus nomes
não aparecessem por discordarem do provão.
Para que
Allyson Vicente Diniz, da Universidade Federal da Paraíba,
atingisse o primeiro lugar entre os alunos de engenharia mecânica,
teve de estudar semanalmente até oito horas sem contar
as aulas. Pesa-lhe ainda ter vindo do interior do Nordeste
-ele é de Campina Grande.
Apenas
a monumental disposição fez com que eles contrariassem
o previsível. A tendência na classe média
brasileira é que os estudantes paguem mensalidades
até o ensino médio (antigo colegial) e depois
ingressem numa universidade pública. Nascidos em famílias
mais abastadas, não precisam trabalhar -não
precisam frequentar cursos noturnos.
Não
é o caso dos oito vitoriosos, obrigados a mesclar bicos
com a labuta acadêmica, como aconteceu, por exemplo,
com Marilane Floriano Correa, da Unesp, em São Paulo,
primeiro lugar em odontologia.
Eles são
a exceção e, feito heróis, suas histórias
prestam-se ao surgimento de um movimento que se avoluma no
país: o movimento dos "sem-faculdade".
Neste
mês, integrantes de entidades estudantis acamparam no
campus da USP, na cidade de São Paulo, exigindo mais
vagas no ensino superior público.
Eles anunciaram
que vão ocupar as carteiras nas salas de aula: querem
ser reconhecidos como alunos especiais e pisam nas regras
do vestibular assim como o MST pisoteia os títulos
de propriedade.
A medida
da disseminação, nas camadas populares, da idéia
de que a faculdade é o novo limite entre marginalidade
e integração na sociedade está na veloz
propagação de cursinhos pré-vestibulares
comunitários.
Depois
de uma experiência piloto em 1992, na Baixada Fluminense,
já são 800 cursinhos que, no ano passado, atenderam
a 60 mil alunos, quase todos de instituições
públicas, a maioria vivendo na periferia e sem condições
de pagar por um curso pré-vestibular.
Núcleos
de resistência contra a exclusão educacional,
esses programas, mantidos por voluntários, jogam de
acordo com as regras do jogo: ajudam os estudantes a realizar
testes.
Briga
desigual. Muitos chegam lá sem conhecer os rudimentos
da língua, da matemática e das ciências,
vítimas de escolas indigentes. Além do conteúdo,
os alunos aprendem a ter confiança, recebendo, na prática,
aulas de auto-estima. Precisam, na marra, acreditar na possibilidade
de conseguir, em pouco tempo, superar tudo o que não
aprenderam.
Ainda
silencioso, o movimento dos "sem-faculdade" é
politicamente mais importante do que o estridente movimento
dos sem-terra.
Para as
reivindicações dos "sem-faculdade"
se tornarem ruidosas, a exemplo das dos sem-terra, é
preciso apenas tempo. A cada ano, o número de matrículas
no ensino superior tem crescido 10%, alterando as fronteiras
da marginalidade e dos valores salariais no contracheque.
PS -Caso
de heroísmo educacional, desta vez de adolescentes.
A sala de informática da Escola Estadual Godofredo
Furtado, em São Paulo, estava fechada, inútil,
as máquinas viravam sucata. Alguns de seus alunos criaram
um grupo denominado Inconformática. Com a autorização
da direção, ocuparam a sala dos computadores.
Eles próprios
passaram a dar aulas em que ensinavam dos rudimentos do "Windows"
até a linguagem HTML. A cada mês, apareciam mais
alunos, animando também os professores. Na semana passada,
o gesto saiu do anonimato: os "inconformáticos"
foram premiados pelo Instituto Ayrton Senna, pela Microsoft
e pela Gateway. Com isso, a escola ganhou um laboratório
moderno, com conexão veloz à Internet.
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