Crítica cinema/documentário
Política se expressa de forma poética em 'Nostalgia da Luz'
No longa de Patricio Guzmán, chilenos buscam desaparecidos políticos no deserto
Vista do espaço, a Terra tem uma única mancha marrom: o deserto do Atacama, no norte do Chile. Lá, onde o céu está sempre aberto, os astrônomos instalaram um telescópio gigante para observar as estrelas e entender o passado do Universo.
Lá, onde nunca chove, arqueólogos buscam vestígios de antigas civilizações. É também lá que familiares de desaparecidos políticos vasculham o terreno pedregoso para encontrar restos dos corpos de assassinados pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
Como um enorme portal para o passado, o Atacama condensa essas investigações e descobertas. É olhando para o céu translúcido e para o solo árido que Patricio Guzmán tece o delicado "Nostalgia da Luz".
COSMOS
O documentário, com traços de ensaio poético, constrói pontes entre a procura das origens do cosmos com a história bem mais recente que ainda permanece encapsulada na memória contemporânea. Mesclando filosofia, astronomia, arqueologia e política, Guzmán faz uma obra fascinante.
Um texto cirúrgico, sensível e salpicado de impressões pessoais costura imagens soberbas e emocionantes: engrenagens do telescópio, pinturas rupestres, a imensidão do deserto, a vastidão das galáxias, cacos de ossos humanos de militantes assassinados.
Vestígios de "2001", de Stanley Kubrick, parecem inspirar alguns momentos, especialmente quando o observatório astronômico surge imponente na cordilheira.
LEVEZA
A vertente jornalística de Guzmán aparece nas entrevistas com cientistas e familiares de desaparecidos.
Sem pressa, ele deixa o entrevistado falar e desabafar; as imagens fluem com leveza. Um ritmo contrastante com sua obra-prima, "A Batalha do Chile" (1975), documentário em três partes.
A trilogia, considerada uma das mais importantes do cinema político, trata do governo de Salvador Allende, das mobilizações populares e do sangrento golpe de Estado. Nela, o registro histórico daquele momento frenético da história chilena tem explosão jornalística, um agudo senso de urgência e de denúncia.
Agora, em "Nostalgia da Luz", a política permanece no centro, mas se expressa na poesia das imagens e do texto. Vai ao âmago: no vaporoso espaço sideral e no duro solo do deserto. Essencialmente, reflete sobre a necessidade da história e da memória. De todos os corpos: celestes e humanos. Todos contêm cálcio. Afinal, o pó das estrelas está em nós.