Paulistanos enfrentam 7 horas em ônibus 'open bar' por Festa do Peão de Barretos
"Às vezes bate uma saudade do mato", diz o cantor Michel Teló em seu apartamento dúplex na Chácara Santo Antônio, bairro da zona sul de São Paulo. "Mas eu sempre dou um jeito de voltar. Seja para visitar a família ou para cantar."
Teló não está só ao pegar o caminho da roça: em seu show, previsto para hoje à noite no rodeio de Barretos, haverá mais gente vinda da capital (o evento estima 160 mil) do que moradores da cidade do interior (112 mil no censo de 2010).
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A maior festa de peão do país começou na quinta e vai até o dia 25. Cem artistas de sertanejo, pop e funk cantarão após sessões de rodeio.
O evento leva a Barretos mais de 1% dos moradores de São Paulo.
Para alguns saídos da cidade grande, é o único contato com o campo no ano. "O mais perto que cheguei de uma fazenda foi vendo o reality show ['A Fazenda', da
Record]", admite Maikel Baldo, 43.
O dono de pet shop, que ostenta no dia a dia um chapéu de boiadeiro, gosta de se definir como "cauboi do asfalto paulistano". Especialmente quando está na edícula da sua casa de cinco suítes, no Jardim Paulista (zona oeste), definindo o abdômen montado num touro mecânico.
Pagou R$ 50 mil no animal biônico quando foi a uma feira de produtos para bichos, no Texas. "Não tenho paciência para academia."
Nem para os 423 km que separam sua casa da praça do Peão (rodados numa média de 85 km/h). "Faz 12 anos que vou pro rodeio e nunca levei mais de cinco horas", diz Maikel, que também é dono de uma camionete Ranger, de R$ 120 mil.
ÔNIBUS DA ALEGRIA
Quem vai de ônibus não consegue chegar tão rápido assim. Mas uma empresa de turismo fez da demora no veículo um fim para a viagem.
Coloca 46 passageiros num coletivo "open bar", onde eles têm acesso irrestrito a cerveja, vodca, jurupinga (mistura de aguardente com vinho), guaraná e refrigerante citrus.
Cada assento conta com um saquinho plástico. "Para deixar a sujeira ou...", diz Biel Lopes, 32, da agência Um Show, especializada em trajetos sertanejos.
O ânimo dessa turma madruga. A caravana parte da capital às 9h e chega ao destino pelas 16h do sábado. Depois de uma noite de diversão à caipira, o retorno parte às 5h. Chega na capital no meio-dia do domingo, 27 horas depois de zarpar.
"Você vai na bagunça. Quando volta, volta capotado, dormindo. Já chega aqui boa para encarar a semana. O negócio é bom, viu, fiote?", afirma a secretária executiva Graziele Teixeira, 26, que vai para sua terceira saga rodoviária com o ônibus movido a álcool.
Um barril de 80 litros, normalmente usado para armazenar azeitonas, faz as vezes de frigobar. Comemorar o aniversário na estrada, com bolo e espumante, sai por R$ 990
para meia dúzia de passageiros.
Animou? Ainda há espaço. "O movimento não está como o esperado. Chega começo de agosto e já está tudo fechado, normalmente. Mas não neste ano, ainda tem vaga [a viagem custa R$ 180]", diz Biel.
Já para os donos de avião ou de helicóptero, não tem mais vaga, não.
A empresária Suzana Bairindi, 45, diz que no ano passado teve de pousar sua aeronave em Ribeirão Preto e alugar um esportivo Pajero ("blindado!") para percorrer 119 km até Barretos, onde se hospedaria.
"Fico na fazenda de um amigo. Vou só para ver aquela energia toda."
O número de voos no aeroporto local triplica nos fins de semana de festa, afirma Alex Nascimento, da prefeitura. São aeronaves fretadas e particulares, mais helicópteros. "Aconteceu de o pátio estar cheio e pedirem para descer em Bebedouro ou em Olímpia [cidades da região]."
É possível que, no ano que vem, paulistanos sem jatinho próprio possam voar para a festa. "A Passaredo nos deu uma carta de intenção de fazer um voo saindo da capital, passando por Ribeirão Preto e pousando em Barretos", afirma Nascimento. Farão uma reunião com o governo federal para viabilizar a rota.
Mas a maior parte dos turistas prefere pernoitar na cidade, o que cria uma hiperinflação de temporada no mercado imobiliário local.
A química Renata Fiabani, 31, paga R$ 400 para se hospedar numa mansão -de onde consegue ouvir o evento. "Já que é para ir tão longe, é para ir com classe." O garbo é compartilhado com outras cem pessoas com quem divide o imóvel. Cem.
Ela descreve a casa como "simples, com piscina e churrasqueira que fica acesa o tempo todo". Para conseguir descansar, Renata prefere mesmo alojamento campestre: leva uma barraca e monta acampamento no jardim da propriedade. "Não dá para dormir dividindo o quarto com 30 pessoas. Faz parte da farra."
Para Graziele Teixeira, da galera do ônibus com bebida liberada, a loucura conta. Para o bem. "O que acontece em Barretos fica em Barretos."
Há exceções, como a prima que conheceu o marido lá. "Mas eu vou por causa da bagunça, não é putaria, não. Adoro ver montaria."
Mas não para por aí. "Tem paquera, sim." Conta de uma amiga que, depois das três da manhã, recebe pretendentes com a frase "volta amanhã que hoje eu não aguento mais beijar". A não ser que o proponente seja extraordinário.
"O paulistano vai para lá para encontrar um negócio que não vê mais em São Paulo. É uma bagunça no bom sentido. Não tem divisão de classe e é um lugar fora do tempo", diz André Piunti, 28, que escreve o blog Universo Sertanejo, do UOL.
PRA QUEM PODE
Por mais que a massa pareça homogênea, a festa tem seus cercadinhos. A entrada masculina para o camarote da Brahma chega a custar
R$ 950 por dia (a feminina é R$ 800).
"Há um lado de negócio muito forte na festa. Se uma música fizer sucesso em Barretos, pessoas do Brasil todo vão com ela na cabeça para casa. Tem artista que contrata carro de som para tocar a música nova o dia inteiro pela cidade", diz Piunti.
E cada aspirante a novo hit pede uma coreografia. É o mercado da professora de danças country Giane Almeida, 46. Na capital, ela ministra cursos na balada Villa Country, na Água Branca (zona oeste), e ganha alunos particulares quando o rodeio se aproxima.
Teve três pupilos que queriam partir do zero e, com um mês de treinamento, não fazer feio em Barretos. "Em geral, procuram quando terminam namoro ou é um casal que quer ser diferente, variar."
Ela diz que em cinco aulas (a R$ 80 cada uma) consegue passar passos básicos do sertanejo universitário, cuja dança mistura o ritmo francês zouk com o nacional samba rock.
Para quem olha, o resultado fica entre a valsa e a lambada. "É bem sensual, para dançar a dois, de casal", afirma Giane.
VOLTA À RAIZ
Peões de temporada também tendem a comprar roupa para o evento.
Não há bota de couro ou cinto de fivelão na Hobi Club. A butique, nos Jardins, é onde expoentes do sertanejo como Sorocaba e Xororó abastecem o guarda-roupa.
"Não tem mais essa de jeans justo e camisa xadrez. Eles querem o que está nos desfiles da Europa", diz Carlão Saade, que vende camisetas a R$ 300 -como água nesta época.
Ele foi chamado para fazer o programa "Encontro com Fátima Bernardes" (Globo) na última quarta. Não conseguiu ir para o Rio gravar por conta do movimento da loja.
Um dos clientes mais fieis é Luiz Cantoni, otorrinolaringologista que cuida das vozes de Zezé di Camargo e de Matheus (segundo nome da dupla que começa com Jorge).
Cantoni estava na loja à procura de grifes como Diesel e Massimo Dutti -para si e para os pacientes cantores. "Acompanho os artistas no palco, em Barretos. Vejo o que eles têm para melhorar ali na hora da performance. E tem sempre o que melhorar. Há muita gente ruim fazendo sucesso. Seria legal olhar para trás, ver gente boa do passado."
A volta à raiz parece ser o mote deste ano como um todo. "O que mantém essa festa é a tradição, como o concurso do berrante", diz Hugo Resende Filho, d'Os Independentes, grupo organizador do rodeio.
Depois de ter atrações internacionais como Mariah Carey, em 2010, o evento focará exclusivamente em atrações nacionais.
"É inviável hoje trazer um show internacional. Os artistas pedem cachê muito alto. Se você traz, dá prejuízo", diz Resende Filho, que declara investimento de R$ 18 milhões (dinheiro público e privado) e expectativa de arrecadar isso mais R$ 2 milhões na festa de peão.
"Tirando que uma dupla como Jorge & Matheus chama tanto público quanto a Mariah Carey", afirma o organizador. "É hora de a gente se orgulhar de ser o que é."
E o que somos, afinal: sertanejo, caipira ou 'country'? "Um pouco de todos juntos."