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Greta Thunberg é fruto de um modelo nórdico onde dinheiro não fala tão alto

Criança sueca aprende desde cedo valores como coletividade, independência e integridade

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Estocolmo

Nas últimas semanas, uma pergunta se tornou frequente nos círculos mais conservadores, mundo afora: quem (ou o que) está por trás de Greta Thunberg? Os detratores da sueca alegam que é impossível que uma garota de 16 anos tenha embarcado em sua cruzada mundial sem uma agenda oculta. Aparentemente, salvar o mundo não é motivo suficiente.

Thunberg já foi acusada de ser marionete de Bill e Melinda Gates, de estar sendo financiada pela fundação filantrópica de Bono, vocalista da banda U2, e foi até falsamente apontada numa foto como a neta secreta do bilionário George Soros. Falsidades. 

A verdade é que Greta Thunberg não é um messias milagroso. Sem diminuir seu mérito próprio de ter chegado aonde chegou, tudo indica que Greta é o fruto social de um país onde dinheiro fala, mas não tão alto quanto em outros cantos do mundo.

 

A Suécia é uma monarquia parlamentarista que segue o modelo nórdico de bem-estar social (ao lado de Noruega, Dinamarca, Islândia e Finlândia): assistência de saúde e ensino superior universais, igualdade de gênero, proteção das liberdades civis e do desenvolvimento humano. Tudo financiado por um regime fiscal que promove ampla redistribuição de renda. 

O Estado, laico, tem um compromisso sério com a coesão social e oferece proteção a indivíduos e grupos vulneráveis na sociedade, ao mesmo tempo em que maximiza a participação pública na tomada de decisões sociais.

Mas como bem atesta o nosso maltratado artigo 5º da Constituição, todos não são iguais perante a lei só porque a lei assim o diz. A eficácia do sistema sueco depende de um amplo tecido social que sustenta a aceitação e o cumprimento das leis, e ainda promove suas noções básicas de igualdade e solidariedade social.

Isso fica evidente em notícias que causam espanto pelo mundo afora: uma rede de supermercados que não vende mais produtos brasileiros em protesto contra o presidente brasileiro Jair Bolsonaro ou o jornal que se recusa a publicar propaganda de produtos e serviços ligados a combustíveis fósseis. 

Reações dessa natureza, que colocam valores acima do sucesso financeiro, não se limitam a pequenos empreendimentos. Cinco anos atrás, um anúncio televisivo usou um tradicional poema sueco para promover a venda de um automóvel. A Academia Sueca (responsável pela concessão dos prêmios Nobel) entendeu que a empresa (que havia tido autorização dos sucessores da poeta) estava violando um símbolo cultural e distorcendo sua mensagem originária. A propaganda saiu do ar.

O principal instrumento na construção desse capital social é um só: educação. E aí o mistério de Greta Thunberg começa a se revelar com mais clareza. Se outros países já haviam produzido lideranças jovens no ativismo ambiental, há algo de peculiar no caso da menina sueca e que talvez explique seu sucesso.

Greta Thunberg cresceu numa sociedade na qual a criança tem, pelo menos em algumas áreas da vida, tanto poder quanto os adultos. É comum em pré-escolas suecas que crianças de apenas dois anos façam suas refeições na forma de bufê, escolhendo o que querem comer. Cada uma aprende muito cedo a estender o braço com a mão espalmada dizendo “stopp, min kropp” (pare, meu corpo), numa manifestação inequívoca de que o outro não pode chegar perto do seu corpo se ela não quiser. O país foi, aliás, o primeiro do mundo a banir, já nos anos 1950, a punição corporal em crianças.

(Aliás, vale adicionar que, na Suécia, o consentimento sexual precisa ser expresso: quem cala não consente.)

A criança sueca aprende desde cedo que nada é mais importante que sua integridade, física ou moral. Nada mais natural, logo, do que se rebelar contra um sistema que ameaça sua própria existência. Também não espanta que Thunberg tenha optado por um ativismo diferente, que vigorou por muito tempo sem grandes iniciativas institucionais. Não havia em sua mentalidade sueca a necessidade de se agir como os adultos: sua voz de criança também valia.

Se o sistema educacional sueco estimula uma percepção de cada um como indivíduo, ele promove igualmente um forte sentimento de coletividade. É comum que crianças de creche se reúnam em “assembleia” para decidir democraticamente qual atividade especial farão naquela semana. Exercícios de solidariedade e pensamento coletivo também são frequentes. Nos passeios ao ar livre, muitas escolas instruem as crianças a andar em fila indiana segurando uma corda, de modo que se um parar, param todos e a atenção se volta para aquele que interrompeu a caminhada: ele precisa de ajuda? Nesta semana recebi uma foto da escola da minha filha de quatro anos. O professor havia colocado um bambolê no chão e perguntado às crianças quantas conseguiriam ficar de pé lá dentro ao mesmo tempo. Sete, mostrava a foto. Abraçavam-se bem juntinhas, segurando umas às outras para ninguém cair. 

Crianças em escola de Estocolmo; professor colocou um bambolê no chão e perguntou às crianças quantas conseguiriam ficar de pé lá dentro ao mesmo tempo. Elas descobriram que, se se abraçassem bem juntinhos, caberiam mais crianças
Crianças em escola de Estocolmo; professor colocou um bambolê no chão e perguntou às crianças quantas conseguiriam ficar de pé lá dentro ao mesmo tempo para estimular a coletividade - Arquivo pessoal

No caso de Thunberg, o papel da educação sueca fica ainda mais claro. Aos 11 anos, depois de assistir a um vídeo sobre poluição plástica nos mares, ela passou a se preocupar de forma crescente com a degradação ambiental e o aquecimento global. A preocupação se reverteu em ansiedade e numa forte depressão. Foi, então, diagnosticada com síndrome de Asperger (uma forma de autismo que costuma se expressar em comportamentos repetitivos e interesses limitados), transtorno obsessivo-compulsivo e mutismo seletivo.

Graças a um princípio de acomodação das diferenças pelo sistema educacional sueco, a menina foi encaminhada para uma escola especial, que permitia que ela fizesse “greves” às sextas-feiras para protestar contra a crise climática com um cartaz de papelão em frente ao Parlamento Sueco —o que terminou por lhe render notoriedade mundial.

A acomodação do diferente, como política de Estado, permitiu que uma criança autista discursasse em fórum das Nações Unidas maldizendo a perseguição de “progresso econômico infinito”. Aos olhos do capitalismo mundial, é uma heresia, à qual a garota se permite sem corar as bochechas.

Isto porque lhe ensinaram que existe algo acima do desenvolvimento econômico. Isto porque lhe ensinaram que sua voz vale tanto quanto as outras. Isto porque há lugar para todos dentro do bambolê, se abrirmos espaço e nos abraçarmos.

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