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Não há proteção ambiental que resista à erosão da democracia

STF resgata a convergência entre a legislação brasileira e convenções internacionais

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São Paulo

Longe de ser um tempero numa receita política —algo que poderia ser adicionado ao gosto de cada governo— a participação pública é condicionante da proteção ambiental e abrir mão dela é inconstitucional.

​É com base nesse entendimento que a maioria dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) derrubou, nesta quinta-feira (28), os decretos do presidente Jair Bolsonaro que excluíam a sociedade civil do conselho deliberativo do FNMA (Fundo Nacional do Meio Ambiente), do Conselho Nacional da Amazônia e do conselho orientador do Fundo Amazônia.

O artigo 225 da Constituição Federal prevê que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é não só um direito, mas também um dever constitucional imposto ao poder público e à coletividade.

Áreas de pastagem devastada na floresta Amazônica, na região da bacia do rio Tapajós, no estado do Pará
Áreas de pastagem devastada na floresta Amazônica, na região da bacia do rio Tapajós, no estado do Pará - Pedro Ladeira - 8.abr.22/Folhapress

Portanto, a sociedade deve ter meios para exercer esse dever, o que torna a participação pública um veículo fundamental à proteção ambiental.

O único voto contrário foi do ministro Nunes Marques. No seu entendimento, a extinção de um conselho por decreto é legítima quando sua formação não está prevista em lei.

Afiada, essa distinção foi usada desde o início do governo Bolsonaro para ‘passar a boiada’ sob aparente normalidade jurídica. Ainda em março de 2019, a Casa Civil havia encomendado a todos os ministérios uma análise sobre os conselhos passíveis de extinção.

A manobra não convenceu o STF. "Retrocessos democráticos vêm de alterações normativas que, olhadas individualmente, não afrontam a Constituição, mas progressivamente, tijolo por tijolo, desconstroem pilares da democracia. Essa erosão democrática se manifesta por muitas vias", afirmou o ministro Roberto Barroso ao proferir seu voto.

"Nós somos guardas da Constituição, que é um sistema. Ao se alterar um determinado ponto, eventualmente se altera o todo", afirmou a ministra Cármen Lúcia. Ela citou, em uma analogia, o que teria dito um escultor: "a gente olha sempre o todo para saber o que está sendo transformado".

O STF proferiu decisões similares sobre a diminuição da participação pública em conselhos de outras áreas do governo, como o Conselho Superior do Cinema e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. No último dezembro, o decreto que restringia a participação no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) também foi derrubado pelo STF, em uma decisão da ministra Rosa Weber.

Naquela decisão, a ministra afirmou que a Constituição exigiu a participação popular na administração do meio ambiente e que essa perspectiva requer, por sua vez, uma convergência de condições estruturantes. "Uma tríade dos direitos ambientais procedimentais: acesso à informação, participação pública e acesso à Justiça", propôs Weber.

A proposta resgata a convergência entre a política ambiental brasileira e as convenções internacionais. O Acordo de Escazú, assinado pelo Brasil em 2018, é o exemplo mais avançado de vinculação entre a democracia e a proteção ambiental.

Aliás, a tríade citada por Weber corresponde com o nome completo do documento: Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Questões Ambientais na América Latina e no Caribe.

Os ministros também citaram convenções ambientais da ONU, como a Convenção do Clima, a conferência de Estocolmo (que deu início à discussão internacional sobre desenvolvimento sustentável e completa 50 anos no próximo junho), a Rio-92 e a Rio+20.

"A Constituição de 88 não esteve alheia a esse movimento global", afirmou o presidente do STF, Luiz Fux, ao proferir seu voto nesta quinta.

"No Observatório do Meio Ambiente, nós temos interação com cortes internacionais e foi exatamente do ambiente internacional que se apelidou a nossa Constituição de ‘Constituição Verde’, considerando-a a mais avançada do mundo nesse tema", ele acrescentou.

Apesar do histórico protagonismo ambiental —que já posicionou o Brasil globalmente como um potencial líder do desenvolvimento sustentável— o país hoje é visto sob vasta desconfiança internacional: acusado de pedalada climática nas metas dos Acordo de Paris; motivo de receio da União Europeia em assinar o acordo comercial com o Mercosul; acusado, ainda, de trabalhar contra as negociações sobre biodiversidade da ONU.

O país ainda está em primeiro lugar no ranking global do desmatamento e em quarto entre os que mais matam defensores ambientais.

Com tudo isso, o país ainda não ratificou o Acordo de Escazú —o que o transformaria em lei nacional e implicaria meios para garantir direitos sociais de quem defende a proteção ambiental.

"Tornou-se necessária uma análise política do Acordo de Escazú à luz das novas diretrizes da política ambiental brasileira", justificou o Ministério das Relações Exteriores sobre a falta de encaminhamento da proposta ao Congresso, em resposta ao questionamento do deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP), no último maio.

Embora não seja realista esperar tal avanço na legislação brasileira sob um governo antiambiental, o entendimento solidificado pelo STF nesse julgamento minimamente deve inibir o eufemismo, largamente utilizado pelo Executivo atual, de que a política ambiental está sob uma ‘nova diretriz’.

Os votos dos ministros reforçaram, diversas vezes, que a liberdade de atuação de quaisquer governos se dá a partir do que estabelece a Constituição. O subterfúgio que diz "estamos sob nova direção" não dará mais conta de esconder atos inconstitucionais, como os que implicam em retrocesso ambiental e em exclusão da participação da sociedade civil.

Assim como o sistema que forma a Constituição, a realidade também não é, afinal, compartimentada. Ao ligar os pontos entre direitos sociais, democráticos, indígenas e ambientais e ainda o direito à vida, desta e das futuras gerações, o STF enxergou a figura por inteiro —na verdade, uma desfiguração. Não se garante direito algum sob a erosão da democracia.

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