Longe de ser um tempero numa receita política —algo que poderia ser adicionado ao gosto de cada governo— a participação pública é condicionante da proteção ambiental e abrir mão dela é inconstitucional.
É com base nesse entendimento que a maioria dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) derrubou, nesta quinta-feira (28), os decretos do presidente Jair Bolsonaro que excluíam a sociedade civil do conselho deliberativo do FNMA (Fundo Nacional do Meio Ambiente), do Conselho Nacional da Amazônia e do conselho orientador do Fundo Amazônia.
O artigo 225 da Constituição Federal prevê que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é não só um direito, mas também um dever constitucional imposto ao poder público e à coletividade.
Portanto, a sociedade deve ter meios para exercer esse dever, o que torna a participação pública um veículo fundamental à proteção ambiental.
O único voto contrário foi do ministro Nunes Marques. No seu entendimento, a extinção de um conselho por decreto é legítima quando sua formação não está prevista em lei.
Afiada, essa distinção foi usada desde o início do governo Bolsonaro para ‘passar a boiada’ sob aparente normalidade jurídica. Ainda em março de 2019, a Casa Civil havia encomendado a todos os ministérios uma análise sobre os conselhos passíveis de extinção.
A manobra não convenceu o STF. "Retrocessos democráticos vêm de alterações normativas que, olhadas individualmente, não afrontam a Constituição, mas progressivamente, tijolo por tijolo, desconstroem pilares da democracia. Essa erosão democrática se manifesta por muitas vias", afirmou o ministro Roberto Barroso ao proferir seu voto.
"Nós somos guardas da Constituição, que é um sistema. Ao se alterar um determinado ponto, eventualmente se altera o todo", afirmou a ministra Cármen Lúcia. Ela citou, em uma analogia, o que teria dito um escultor: "a gente olha sempre o todo para saber o que está sendo transformado".
O STF proferiu decisões similares sobre a diminuição da participação pública em conselhos de outras áreas do governo, como o Conselho Superior do Cinema e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. No último dezembro, o decreto que restringia a participação no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) também foi derrubado pelo STF, em uma decisão da ministra Rosa Weber.
Naquela decisão, a ministra afirmou que a Constituição exigiu a participação popular na administração do meio ambiente e que essa perspectiva requer, por sua vez, uma convergência de condições estruturantes. "Uma tríade dos direitos ambientais procedimentais: acesso à informação, participação pública e acesso à Justiça", propôs Weber.
A proposta resgata a convergência entre a política ambiental brasileira e as convenções internacionais. O Acordo de Escazú, assinado pelo Brasil em 2018, é o exemplo mais avançado de vinculação entre a democracia e a proteção ambiental.
Aliás, a tríade citada por Weber corresponde com o nome completo do documento: Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Questões Ambientais na América Latina e no Caribe.
Os ministros também citaram convenções ambientais da ONU, como a Convenção do Clima, a conferência de Estocolmo (que deu início à discussão internacional sobre desenvolvimento sustentável e completa 50 anos no próximo junho), a Rio-92 e a Rio+20.
"A Constituição de 88 não esteve alheia a esse movimento global", afirmou o presidente do STF, Luiz Fux, ao proferir seu voto nesta quinta.
"No Observatório do Meio Ambiente, nós temos interação com cortes internacionais e foi exatamente do ambiente internacional que se apelidou a nossa Constituição de ‘Constituição Verde’, considerando-a a mais avançada do mundo nesse tema", ele acrescentou.
Apesar do histórico protagonismo ambiental —que já posicionou o Brasil globalmente como um potencial líder do desenvolvimento sustentável— o país hoje é visto sob vasta desconfiança internacional: acusado de pedalada climática nas metas dos Acordo de Paris; motivo de receio da União Europeia em assinar o acordo comercial com o Mercosul; acusado, ainda, de trabalhar contra as negociações sobre biodiversidade da ONU.
O país ainda está em primeiro lugar no ranking global do desmatamento e em quarto entre os que mais matam defensores ambientais.
Com tudo isso, o país ainda não ratificou o Acordo de Escazú —o que o transformaria em lei nacional e implicaria meios para garantir direitos sociais de quem defende a proteção ambiental.
"Tornou-se necessária uma análise política do Acordo de Escazú à luz das novas diretrizes da política ambiental brasileira", justificou o Ministério das Relações Exteriores sobre a falta de encaminhamento da proposta ao Congresso, em resposta ao questionamento do deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP), no último maio.
Embora não seja realista esperar tal avanço na legislação brasileira sob um governo antiambiental, o entendimento solidificado pelo STF nesse julgamento minimamente deve inibir o eufemismo, largamente utilizado pelo Executivo atual, de que a política ambiental está sob uma ‘nova diretriz’.
Os votos dos ministros reforçaram, diversas vezes, que a liberdade de atuação de quaisquer governos se dá a partir do que estabelece a Constituição. O subterfúgio que diz "estamos sob nova direção" não dará mais conta de esconder atos inconstitucionais, como os que implicam em retrocesso ambiental e em exclusão da participação da sociedade civil.
Assim como o sistema que forma a Constituição, a realidade também não é, afinal, compartimentada. Ao ligar os pontos entre direitos sociais, democráticos, indígenas e ambientais e ainda o direito à vida, desta e das futuras gerações, o STF enxergou a figura por inteiro —na verdade, uma desfiguração. Não se garante direito algum sob a erosão da democracia.
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