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Planeta em Transe mudança climática

Deixados para trás em Paris, países vulneráveis conquistam justiça climática na COP27

Reconhecimento de que nações desenvolvidas têm responsabilidades maiores sobre a reparação de perdas e danos é a grande conquista

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Sharm el-Sheikh (Egito)

A COP27 conseguiu o que a sua edição anterior havia buscado a todo custo: ser a conferência do clima da ONU mais importante depois do Acordo de Paris, assinado em 2015.

Ao final de duas semanas de negociações e mais duas madrugadas passadas em claro com propostas de textos de última hora, ao amanhecer do domingo (20), a COP27 bateu o martelo sobre a criação de um fundo para reparação de perdas e danos climáticos.

Para quem acompanha as gírias da internet, é possível dizer que o presidente da COP27, o enviado do clima egípcio Sameh Shoukry "fez a egípcia", ou seja, fingiu indiferença, ao longo das duas semanas de negociação, enquanto os países reiteravam suas posições sem qualquer flexibilidade.

A presidência da COP foi criticada por todos os blocos por não pressionar as partes por avanços. Mas o bote foi dado no final.

Jovens seguram cartazes
Protesto de ativistas climáticos na COP27, em Egito, no sábado (19), cobrando resultados; 'não falhe conosco' diz cartaz no alto da foto - Mohamed Abd El Ghany/Reuters

No sábado (19), em meio a boatos de que a conferência estava na pior e sua conclusão seria adiada para o próximo junho, a presidência da COP27 soltou o rascunho de uma decisão que estabelecia um fundo para a reparação de perdas e danos, conforme os critérios exigidos pelos países em desenvolvimento. O bloco permaneceu unido durante a "COP da África" em torno de uma prioridade comum: a preparação para lidar com os efeitos da crise climática.

Os países desenvolvidos —que antes queriam limitar o apoio apenas aos mais vulneráveis, o que deixaria boa parte das nações desamparadas— chegaram a um consenso com o bloco dos países em desenvolvimento a partir do uso do termo "países particularmente vulneráveis".

A linguagem, prevista na Convenção do Clima da ONU, de 1992, faz diferença: aqui o critério para definir a necessidade de um país é sua exposição a eventos extremos e não a sua posição em comparação com outros países.

Assim, o bloco do G77 + China evitou mais uma tentativa de rachadura no grupo dos países em desenvolvimento, reforçando o princípio da convenção de que os países desenvolvidos têm responsabilidades maiores por serem os grandes emissores históricos e principais causadores da crise climática.

O reconhecimento de que essa responsabilidade se estende sobre a reparação de perdas e danos é a grande conquista da decisão sobre o novo fundo —cujos detalhes práticos de funcionamento, afinal de contas, ainda serão definidos ao longo do ano que vem.

Não há dinheiro que pague a conta dos desastres climáticos, cada vez mais furiosos, que já devastam países inteiros com enchentes, furacões, secas, entre outros fenômenos extremos —tudo conforme o que foi calculado pela ciência climática há mais de 30 anos.

Mesmo diante dos prognósticos devastadores, na assinatura do Acordo de Paris, os países concordaram em deixar para trás os mais vulneráveis ao clima —ao mesmo tempo em que firmavam um acordo histórico, com consenso inédito sobre a necessidade de combater as mudanças climáticas.

Sob uma média global já 1°C mais quente do que os níveis pré-industriais, o mundo não acreditava ser possível conter o aquecimento do planeta em até 1,5°C na época da assinatura de Paris. O acordo previu, então, a meta de conter a subida da temperatura média global em "até 2°C, na direção de 1,5°C".

A diferença de meio grau é questão de vida ou morte para as nações mais vulneráveis. Nas entrelinhas, os signatários de Paris assinaram embaixo do cenário em que os países-ilha desaparecem do mapa.

Em 2018, a verdade ficou mais inconveniente quando o painel do clima da ONU concluiu um relatório sobre o cenário de 1,5°C afirmando que, sim, ele ainda é possível, caso o mundo consiga derrubar cerca de metade das emissões de gases-estufa até 2030.

O estudou causou um "climão" nos anos seguintes e os países só conseguiram encarar o desafio de atualizar suas metas climáticas de curto prazo sob o empurrão político do então recém-eleito presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que convocou uma cúpula do clima para anunciar que os EUA se ajustariam à meta recomendada pelo painel do clima, no início de 2021.

Como capítulo seguinte, a COP26 tentou fazer história trazendo para sua decisão final o reconhecimento dos países sobre a importância de conter o aquecimento global em até 1,5°C. Mas faltava o elemento da justiça climática, trazido pela assunção de que os países que menos contribuíram para a crise estão pagando o preço mais alto, como também pela perspectiva de que o sistema multilateral sirva justamente para garantir, conforme a tempestade se agrava, que os países possam contar uns com os outros.

Montagem com fotos de quatro pessoas dormindo sentadas
Com atraso nas negociações, sessão final da COP27, na madrugada deste domingo (20), teve delegados dormindo nas cadeiras - Joseph Eid/AFP

Se a COP sediada no Reino Unido terminou sob protesto de Índia e China, agora foram os países desenvolvidos que saíram reclamando da COP da África. Segundo o bloco rico, não adianta reparar perdas climáticas se não evitarmos seu agravamento —algo que só pode ser feito com mais compromissos de redução de emissões.

No entanto, a senha deixada pelos países em desenvolvimento desenha outro raciocínio: não adianta cobrar que cada país reduza suas emissões se o mundo não coopera para lidar com os danos já causados pelos emissores históricos.

Ou seja, a saída para conter o aquecimento em até 1,5°C não seria priorizar a redução das emissões, como sugerem os países ricos, mas justamente garantir o tratamento equânime entre mitigação, adaptação e agora também a reparação de perdas e danos.

Esse equilíbrio é o desafio que se coloca para o clima global nos próximos anos, fundamentais para uma curva nas emissões e também cada vez mais sensíveis a eventos extremos. Afinal, se na lida com os efeitos do clima os países estiverem cada um por si, não se pode esperar que cooperem por todos na hora de reduzir emissões.

O sucesso diplomático do acordo climático, que em Paris renovou o fôlego do sistema multilateral, volta a ser uma ferramenta de recuperação da confiança entre os países, estremecida por uma sequência de crises globais, disparadas pela pandemia do coronavírus e pela Guerra da Ucrânia.

Não se trata exatamente de solidariedade, embora o bloco rico goste de usar a palavra, mas de uma lição básica de interdependência —a primeira de uma série de aprendizados que a crise climática impõe ao mundo político.

O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.

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