Descrição de chapéu mudança climática

Em risco de extinção, arara-azul-de-lear está no centro de disputa por construção de parque eólico

Liminar interrompeu obra, mas empresa afirma priorizar preservação da ave

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São Carlos (SP)

Desde o início deste século, a população da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), espécie ameaçada de extinção, recuperou-se de forma considerável em seu habitat na caatinga da Bahia, passando de poucas centenas para cerca de 2.000 aves. A área, porém, é alvo de uma disputa judicial entre defensores e críticos de um projeto de geração de energia eólica.

A obra, que já recebeu investimentos de R$ 840 milhões, está praticamente pronta e seguirá uma série de procedimentos para minimizar os riscos que as aves poderiam correr, afirma a empresa responsável, a multinacional francesa Voltalia.

Contudo, uma liminar concedida em abril a partir de uma ação civil pública suspendeu a licença de operação do parque eólico no município de Canudos (BA).

Arara-azul-de-lear é encontrada exclusivamente na caatinga baiana, na região da cidade de Canudos - João Marcos Rosa - 18.abr.2012/Nitro

Especialistas afirmam que é viável mitigar o impacto do empreendimento, embora seja necessário um monitoramento de longo prazo.

A ave da caatinga pertence ao mesmo gênero da arara-azul-grande, conhecida de quem visita o Pantanal e presente também em trechos do cerrado e da Amazônia.

A arara-azul-de-lear tem cerca de 70 cm. Sua plumagem é de um azul-esverdeado ou índigo. A pele amarela ao redor dos olhos e do bico é bem maior que na parente pantaneira.

A espécie ganhou seus nomes —popular e científico— por causa do artista e poeta britânico Edward Lear (1812-1888), que a retratou com base em exemplares de zoológico.

A descrição científica inicial, de autoria de um sobrinho do imperador francês Napoleão Bonaparte, foi feita a partir da ilustração do artista. No entanto, o habitat do animal só foi localizado em 1978.

"É uma espécie endêmica [exclusiva] da caatinga do norte da Bahia, altamente especializada em habitar formações rochosas com paredões de arenito. Nunca houve um registro de nidificação [construção de ninhos] em árvores, só no arenito", conta o ornitólogo Thiago Filadelfo, mestre em ecologia pela UnB.

O principal alimento é o licuri, diz o especialista. Esse fruto de palmeira tem coquinhos muito difíceis de quebrar.

"É um dos poucos animais que conseguem acessar o miolo dele. Como o conteúdo é supergorduroso e nutritivo, o consumo dele vale mais a pena do que ficar enchendo o papo com sementes e frutas de baixa concentração calórica."

Canudos_BA, 04 de fevereiro de 2013. Arara-azul-de-lear na Estação Biológica de Canudos; ave está sob risco de extinção - João Marcos Rosa - 18.abr.2012/Nitro

A perda dos licurizeiros por conta do desmatamento é um dos fatores por trás da redução populacional da espécie no passado. Há ainda o impacto do tráfico de animais e da caça, além da crise climática.

Um estudo publicado na revista científica PeerJ em fevereiro mostrou que as araras podem estar entre as espécies mais afetadas pelo aumento da temperatura média da região nas próximas décadas. O trabalho estimou as áreas que serão climaticamente adequadas à ave até 2070.

"Esses modelos não incluem o habitat específico da ave, mas, sim, o clima adequado para ela. Verificamos uma grande perda de área para o futuro, podendo chegar a até 81%. Se isso acontecer, ela pode mudar seu atual status para o de espécie criticamente ameaçada", diz a primeira autora da pesquisa, Gabriela Silva Ribeiro Gonçalves, da Universidade Federal do Pará.

O franco-brasileiro Robert Klein, CEO da Voltalia, disse à Folha que o projeto eólico na região foi formulado levando em conta a situação específica da arara-azul-de-lear.

"Seria incoerente da nossa parte não pensar em tudo isso, já que a missão da empresa define desde o princípio a preocupação com as energias renováveis e com a biodiversidade. Além de mitigar os impactos sobre a espécie, a nossa intenção é que o parque eólico tenha um efeito positivo direto sobre ela."

Segundo Klein, a Voltalia está investindo na recuperação dos licurizeiros e na criação de uma RPPN (reserva particular) numa área de nidificação da espécie, que deverá ter cerca de 5.000 hectares.

Além disso, as turbinas eólicas serão pintadas em cores escuras, para ajudar as aves a enxergá-las melhor e desviar delas, e serão equipadas com um sistema de inteligência artificial que detecta a proximidade das araras e pode paralisar temporariamente as hélices caso haja risco de colisão.

"As avaliações que realizamos mostram que o risco para as araras é muito baixo. Estamos abertos a discutir caso haja estudos que mostrem o contrário, mas ninguém apresentou isso para nós até agora", afirma Klein. A empresa já recorreu da decisão liminar.

Filadelfo diz que medidas de mitigação semelhantes às da Voltalia já são adotadas em países como Espanha e Portugal, em que também há risco de dano a espécies de aves de grande porte.

"A questão é que não há outros empreendimentos com esse possível impacto sobre psitacídeos [araras e papagaios] de grande porte, então a gente não tem muito como fazer essa comparação por enquanto", diz o ornitólogo.

"O importante é manter olhares atentos dos órgãos ambientais e da comunidade para acompanhar o projeto, de forma que ele tenha responsabilidade e assuma um compromisso sério."

Filadelfo avalia que o Inema (Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos da Bahia) levou em conta as principais variáveis ao conceder licenças para o parque eólico.

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