Indígenas e quilombolas lutam contra impactos ambientais do 'lítio verde' no Vale do Jequitinhonha

Povos alertam para aparecimento incomum de animais na região; OUTRO LADO: mineradora diz que ocorrência não tem a ver com empreendimento

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Rio Jequitinhonha, principal curso d'água do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais

Rio Jequitinhonha, principal curso d'água do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais Pedro Lovisi/Folhapress

Araçuaí e Itinga (MG)

Indígenas, quilombolas e comunidades antigas foram os primeiros a relatar impactos ambientais da larga extração de lítio no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Alguns associam o aparecimento incomum de animais na região ao empreendimento, além de viverem com ruídos e poeira próximo de casa.

O único projeto de grande porte hoje em execução no Vale é o da mina Grota do Cirilo, operada pela canadense Sigma Lithium entre as cidades de Itinga e Araçuaí. A mineradora exportou, pela primeira vez, 15 mil toneladas da rocha onde se extrai o lítio e 15 mil toneladas de rejeitos na última quinta-feira (27). A capacidade de produção vai crescer até o ano que vem, segundo a empresa.

O comissionamento da mina começou em 2021, segundo a Sigma. Desde então, indígenas do povo Pankararu-Pataxó perceberam o aumento da quantidade de morcegos e abelhas na aldeia onde vivem, entre as cidades de Araçuaí e Coronel Murta, a 15 quilômetros da planta da mineradora.

"As explosões na mineração afugentam os animais, e os morcegos são muito sensíveis. Se tirar os frutos da flora, onde é que os animais vão procurar seus alimentos? Na nossa aldeia agora está com muito morcego, nunca tinha visto isso", diz Cleonice Pankararu, bióloga e uma das lideranças do grupo indígena. Ela conta também que recentemente precisou chamar bombeiros para retirar um enxame de abelhas da região.

A Sigma, por sua vez, diz que o aumento da quantidade de animais nas aldeias não está relacionado ao projeto. "Isso não faz sentido. Até a escola onde meu filho estuda foi atacada por abelhas; como, neste momento, os ipês têm aflorado, elas estão à procura de mel", diz Paulo Freitas, gerente de Saúde, Segurança e Meio Ambiente da mineradora.

Em nota, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais relatou que os técnicos que deram a licença ambiental à Sigma avaliaram os impactos da mineração a comunidades próximas e destacou que o aumento de animais "pode ou não ter relação com a atividade produtiva no local". A pasta disse que vai analisar os questionamentos.

Fato é que indígenas e quilombolas estão com medo. "A gente depende da terra, por isso temos esse cuidado. Não caçamos animais de qualquer jeito, coletamos os frutos na hora certa e, se tirarmos uma árvore, plantamos outras três. Essas pessoas tratam o vegetal como nada, mas para a gente ele é um ser vivo de direito", diz Cleonice Pankararu.

Estrutura de da Sigma Lithium de captação de água do Rio Jequitinhonha, em Araçuaí, Minas Gerais
Estrutura de da Sigma Lithium de captação de água do Rio Jequitinhonha, em Araçuaí, Minas Gerais - Pedro Lovisi/Folhapress

Parecer do governo estadual que recomendou o licenciamento ambiental à mineradora aponta que o empreendimento da Sigma demanda intervenção ambiental em 105 hectares, incluindo a supressão de 60 hectares de vegetação nativa e de 422 árvores distribuídas em 36 hectares. A planta também tem capacidade para extrair 150 mil litros de água por hora do Rio Jequitinhonha, principal curso d’água da região –conhecida, além da pobreza, pela seca.

A Sigma aponta que reutiliza toda a água destinada ao processo de beneficiamento mineral, processo que concentra a rocha extraída da terra e permite o aumento da quantidade de lítio nela. Especialistas, por outro lado, destacam que a reutilização da água já é feita na grande maioria das usinas de beneficiamento, inclusive de minério de ferro.

A mineradora apelida o mineral extraído de lítio verde. Segundo ela, o processo de extração não utiliza químicos nocivos e tem saldo zero na emissão de gás carbônico. Além disso, o empreendimento não tem barragens de rejeito, o que impede que tragédias como a de Mariana e Brumadinho aconteçam na região. Isso sem contar que e o mineral é essencial para a produção de baterias de veículos elétricos, hoje a solução para o fim de veículos movidos à combustão.

Ainda assim, o conselho da Área de Proteção Ambiental (APA) da Chapada do Lagoão, em Araçuaí, anulou em maio uma permissão concedida à Sigma para sondar a quantidade de minério presente na região. A chapada está a cerca de 30 quilômetros da mina Grota do Cirilo, e é hoje cobiçada por mineradoras que veem potenciais reservas de lítio na área.

O governo do estado prevê que ao menos outras quatro mineradoras cheguem ao Vale do Jequitinhonha nos próximos anos. No final de julho, a administração do governador Romeu Zema (Novo) anunciou que a canadense Lithium Ionic também vai extrair lítio em Araçuaí, além de Itinga e Salinas, cidades próximas.

Se a mineração chegar, com certeza, com o tempo, precisaremos sair. Lutar com quem tem dinheiro é remar contra a maré

Pacífico de Sá, 62

morador do quilombo

A decisão do conselho veio após o Ministério Público estadual recomendar a suspensão da votação, sob argumento de que a mineradora não havia conversado com comunidades tradicionais ao redor. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) diz que os governos devem escutar os povos afetados por empreendimentos do tipo.

A chapada tem área de preservação permanente de 5.000 hectares e área de preservação ambiental de 24 mil hectares, o que representa 13% do território de Araçuaí. De acordo com relatório da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais (Emater), há 139 nascentes na região, que pertencem à bacia do Rio Jequitinhonha.

Uma dessas nascentes abastece 27 famílias dos quilombos Giral e Malhada Preta. Segundo Simar Gonçalves de Sá, 56, liderança das comunidades, desde 2012 as famílias bombeiam água do local. "Essa nascente é a riqueza do nosso lugar. Sem ela, jamais conseguiríamos estar em nossas casas. Temos medo de a mineração secá-la", diz. Antes de criarem a estrutura de bombeamento, os quilombolas precisavam lavar roupas na nascente e buscar baldes d‘água com ajuda de gados.

Seu marido, o comerciante Pacífico de Sá, 62, mora na comunidade há 37 anos e hoje teme ter que sair da região. "Sou pai de seis filhos e criei toda a minha família aqui. Se a mineração chegar, com certeza, com o tempo, precisaremos sair. Lutar com quem tem dinheiro é remar contra a maré", afirma.

Na região há outras comunidades, inclusive o quilombo Córrego do Narciso do Meio, uma das mais tradicionais da região –55 famílias moram lá.

O medo também é de que aconteça na região o que já acontece com as casas da comunidade Piauí Poço Dantas, a 1,5 quilômetro da mina Grota do Cirilo e que hoje abriga 25 famílias. Lá, moradores sofrem com a poeira causada pelo empreendimento. Uma idosa de 69 anos disse não ser possível nem estender a roupa no varal. Segundo ela, a partir do comissionamento da mina, rachaduras começaram a aparecer nas paredes das casas da região.

A Sigma diz que os problemas são relativos ao material utilizado na construção das residências. Quanto à poeira, a mineradora diz que mede os níveis gerados em tempo real e que os registrados até então são autorizados pela legislação.

Rachadura em casa de morador da comunidade Piauí Poço Dantas, em Itinga, teria sido provada pela mineração; empresa nega
Rachadura em casa de morador da comunidade Piauí Poço Dantas, em Itinga, teria sido provada pela mineração; empresa nega - Pedro Lovisi/Folhapress

De acordo com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente, há medidas de mitigação que "envolvem a manutenção preventiva das máquinas e veículos, além de ações de umectação das vias de acesso". "Também está previsto o uso de canhões de dispersão de água sobre as correias, silos e demais estruturas, para minimizar as emissões atmosféricas, e reduzir ruídos e vibração em pontos preestabelecidos", acrescenta.

Entre narrativas contrárias e a favor, especialistas apontam que a extração de lítio é importante para o cumprimento das metas climáticas. Ainda assim, eles apontam ser necessário monitorar constantemente os impactos do empreendimento.

Tatiana Barreto, professora do departamento de Engenharia de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto sintetiza: "A mineração degrada o meio ambiente, isso é fato. A questão é que a gente precisa fazer isso da melhor maneira possível para gerar menor degradação. E, uma vez degradado, é totalmente possível usar a engenharia para devolver esse passivo como um ativo para a sociedade."

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