Jequitinhonha recebe fortuna do lítio sem plano de Lula e Zema contra pobreza

OUTRO LADO: Governos federal e estadual dizem criar grupo de trabalho para desenvolver a região mais pobre de Minas Gerais

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Planta da Sigma, em Araçuaí e Itinga, no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais

Planta da Sigma, em Araçuaí e Itinga, no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais Divulgação

Araçuaí e Itinga (MG)

Região mais pobre de Minas Gerais, o Vale do Jequitinhonha receberá bilhões em recursos de royalties nos próximos anos com a extração de lítio sem ter um plano dos governos Luiz Inácio Lula da Silva, Romeu Zema e prefeituras locais para a superação da miséria. O mineral é a principal matéria-prima para a produção de baterias de veículos elétricos e é disputado por China, Estados Unidos e Europa.

Os municípios de Araçuaí e Itinga, primeiros a extrair lítio em larga escala na região, devem receber em três meses até R$ 86,25 milhões relativos à primeira exportação de espodumênio, rocha que contém lítio. O mineral foi enviado para a China na quinta-feira (27).

O valor representa mais da metade do orçamento das duas prefeituras nos últimos dois anos. No caso de Itinga, a quantia pode representar o orçamento integral de 2021 e 2022.

Vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin (PSB) e o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, participam de cerimônia de exportação de lítio para China, no porto de Vitória
Alckmin e Zema participaram de cerimônia de exportação de lítio para China, no porto de Vitória, na quinta passada (27) - Divulgação/Geraldo Alckmin no Twitter

Araçuaí tem 4.372 famílias no Bolsa Família, e Itinga, 2.500, para uma população de 34 mil e 14 mil moradores, respectivamente. Em todo o Vale, 668 mil habitantes e 97 mil famílias estão inscritas no Bolsa Família. A região é apelidada de Vale da Miséria.

O governo Zema estima que Minas atraia R$ 30 bilhões em investimentos com a extração do mineral no Jequitinhonha até 2030. Em maio, o governador lançou em Nova York o programa Vale do Lítio, que visa atrair mineradoras para 14 cidades. Até agora, cinco empresas já entraram no programa do governo estadual.

O primeiro empreendimento já em curso é operado pela Sigma Lithium, fundada no Canadá por investidores brasileiros. A empresa extrai o mineral em Araçuaí e Itinga, e na quinta exportou 15 mil toneladas de espodumênio e 15 mil toneladas de rejeitos, de onde a tecnologia chinesa é capaz de encontrar lítio.

O minério partiu do porto de Vitória. Estavam lá o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin (PSB), e o governador Romeu Zema (Novo), além dos prefeitos e dos presidentes das Câmaras das duas cidades mineradoras.

A extração de lítio por parte da Sigma deve durar ao menos 13 anos, mas o governo mineiro estima que outras reservas na região possam ser extraídas por até cem. O Brasil tem a oitava maior reserva do mineral, segundo o governo dos EUA. Quase toda está no Vale do Jequitinhonha.

A estimativa é que a extração da Sigma gere R$ 115 milhões em royalties apenas em 2023. Quando a empresa ampliar sua unidade, a quantia deve ser de R$ 305 milhões por ano; a previsão é que a expansão seja concluída até o ano que vem.

Do valor arrecadado, 60% vai para o município minerador —no caso da Sigma, como uma cava está em Araçuaí e outra em Itinga, o valor será repartido conforme a quantidade de minério em cada uma delas. A segunda cidade arrecadará também outros 15%, já que é lá onde se beneficia a rocha que tem lítio.

Não há, porém, planos concretos e públicos sobre a destinação dessas receitas, tampouco como esse dinheiro será usado no combate à pobreza na região.

"Precisaríamos de um apoio maior do poder público federal e estadual desde que foi anunciada a grandeza do empreendimento. Hoje, estamos estruturando e organizando a cidade com as próprias pernas, e, dado que o Vale do Jequitinhonha é apregoado como Vale da Miséria, faltou por parte dos governos pegar na nossa mão e transformarmos [a região] juntos", diz João Bosco Versiani (PP), prefeito de Itinga. "Isso sem intrometer no que é de competência dos municípios."

As prefeituras carecem de estrutura adequada para planejar políticas públicas e investimentos, principalmente com o dinheiro que chegará aos municípios nos próximos anos. "A grande preocupação é sobre como esses recursos serão geridos. Muitas vezes, as gestões municipais e estaduais não são transparentes", diz Paulo Honório, advogado tributarista especializado em mineração.

Questionado sobre a falta de auxílio às prefeituras, o governo estadual diz respeitar o pacto federativo. "Os prefeitos têm a delegação, enquanto mandatários, para tomar as decisões que eles quiserem", afirma Fernando Passalio, secretário de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais.

De acordo com Passalio, um grupo de trabalho do estado discute a questão com os municípios. Do total dos royalties, 15% chegarão à conta do governo de Minas Gerais. Não há, porém, um plano público e detalhado em relação ao que o governo Zema fará com os recursos.

Passalio afirma que o estado injetará mais verbas na região para estimular o desenvolvimento. "O Vale do Jequitinhonha, que agora será o vale das esperanças e das oportunidades, vai ser o local onde existirá uma pressão por mais infraestrutura energética e logística multimodal, como ferrovia, mineroduto e rodovia", diz o secretário. Mas —mais uma vez— não há planos concretos para essa alocação.

A população local, enquanto isso, enfrenta os desafios da pobreza. Roseli Gonçalves Barbosa, 41, é uma das inscritas no Bolsa Família. Ela tem três filhos, mora em uma comunidade a 36 quilômetros do centro de Araçuaí e reclama da renda apertada.

"Recebo os R$ 750 do Bolsa Família todo mês, e às vezes tento criar galinha, mas as raposas vêm e pegam. As que sobrevivem eu vendo por R$ 50, mas as pessoas não têm condição de pagar e pedem 20 dias. No fim do mês, eu não consigo tirar nem R$ 1.000", conta.

Roseli Gonçalves Barbosa, 41, é uma das inscritas no Bolsa Família, em Araçuaí (MG)
Roseli Gonçalves Barbosa, 41, é uma das inscritas no Bolsa Família, em Araçuaí (MG) - Pedro Lovisi/Folhapress

Ao governo Lula a Folha pediu entrevista com o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e com o secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral, Vitor Saback. No entanto, a assessoria alegou falta de agenda.

Nesta quarta (2), Silveira se encontrou com a presidente da Sigma, Ana Cabral, e disse que a extração de lítio "é uma oportunidade de gerar empregos, renda e desenvolvimento social para a população" da região. A declaração foi divulgada após a publicação desta reportagem.

Saback já participou de um seminário em junho com prefeitos do Vale do Jequitinhonha. Por meio de nota, o ministério afirmou que "está elaborando um programa multissetorial e específico para a região".

Fato é que, sem uma plano de distribuição, a riqueza oriunda do mineral, ainda que bem gerida pelos prefeitos, pode ficar apenas nos municípios onde há extração de lítio —e esse é o temor de prefeitos de cidades ao redor. O de Virgem da Lapa, uma das que fazem parte do Vale do Lítio, Diogenes Timo Silva (Podemos), reclama que até agora não recebeu nenhuma proposta concreta dos governos.

"O ideal seria construir fábricas em outras cidades da região, mas parece que o produto vai ser exportado para a China", afirma Silva. Ele é presidente da Associação dos Municípios da Microrregião do Médio Jequitinhonha.

A Sigma, por exemplo, não produz carbonato e hidróxido de lítio, compostos químicos usados na fabricação de baterias. A empresa apenas extrai a rocha que contém lítio, concentra a quantidade do mineral e a exporta.

Há atualmente na Assembleia Legislativa de Minas Gerais um projeto de lei que visa a criação da cadeia produtiva de lítio no Vale do Jequitinhonha, a partir de incentivos fiscais. A proposta, porém, está parada na Comissão de Meio Ambiente e sem previsão de ser votada em plenário.

"Sabemos que não é possível neste momento criar a bateria de veículos elétricos, mas é possível chegar a uma matéria próxima a ela e, assim, criar mais emprego e renda na região", diz o autor da proposta, deputado estadual Doutor Jean Freire (PT).

Cinthia de Paiva Rodrigues, gerente de Pesquisa e Desenvolvimento do Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração), por sua vez, defende que o poder público estimule a cadeia produtiva ainda antes da extração do lítio. "Quando um município consegue trazer fornecedores de peças, equipamentos e manutenção, ele passa a não ser mais dependente somente do produto que vai para a exportação", diz.

Os moradores se incomodam com a falta de planejamento dos governos: "Zema e Lula estiveram em Araçuaí durante as eleições, mas eles aparecem aqui apenas para pedir voto", diz Lucas Martins, membro do Movimento dos Atingidos por Barragens. Nas eleições de 2022, Lula venceu em Araçuaí e Itinga com 66% e 78% dos votos, respectivamente. Já Zema perdeu nas duas; ele teve 38% e 23%.

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