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Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Álvaro Machado Dias

Piratas!

Pirataria está mais forte do que nunca, mas precisamos rever alguns conceitos para entender isso

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Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

Piratas personificam o perigo no imaginário de quem representa a vida como uma forma de aventura. Crianças os amam por isso. Nem sempre foi assim, o que não significa que a repulsa tenha sido a regra. Piratas sempre mantiveram relações ambíguas com o Estado, juiz e patrono de seu legado, que, por conveniência, a alguns dedicou estátuas, e a outros, o calabouço.

Sir Francis Drake, apelidado pelos espanhóis de El Dragón, morreu rico e livre, em 1596, após compartilhar seus espólios com a coroa britânica, a qual apadrinhou no tráfico negreiro. Já o Capitão Kidd foi executado em 1701. Seu corpo passou dias apodrecendo em uma gaiola de ferro suspensa sobre o Tâmisa, como lembrete do fim reservado aos bandidos do mar.

Grupo de piratas detidos após Marinha indiana libertar navio de pesca iraniano sequestrado na costa da Somália - 30.jan.24/Marinha Indiana via AFP

A mitologia moderna não faz jus ao tino político dos maiores do ramo, nem gosta de representá-los como muitas vezes foram: mercenários capazes de mobilizar frotas poderosas em prol de causas nacionais e de outras quaisquer.

Ching Shih era prostituta até a virada do século 19. Dez anos depois, controlava uma frota de 1.200 navios e 70 mil piratas, habilmente utilizados em uma negociação com o governo chinês (1810) que, entre outras coisas, permitiu que boa parte das embarcações permanecessem na "iniciativa privada" durante sua confortável aposentadoria.

Quando ela se aposentou, a pirataria já havia deixado para trás sua era de ouro, e o que se assume desde então é que a prática "para valer" ficou no passado. Eu não creio que isso seja verdade.

A ideia que eu gostaria de apresentar hoje é que basta atualizarmos os sentidos de pirata e pirataria para percebermos que a mesma caminha para um novo apogeu, possivelmente comparável ao do período em que Jack Sparrow (John Ward, na vida real) deitava âncora e se afogava em rum.

Para que essa atualização funcione, é essencial contornar as falsas associações.

Pirateadores de mídia não têm nada de genuínos piratas, a despeito do que falam as suas vítimas. Seu ramo é a falsificação, enquanto o da pirataria é o roubo. Sua conversão à legalidade dá-se quando a cópia torna-se quebra de patente e não quando a pilhagem passa a ser estimulada contra os inimigos da nação.

Seu zênite é quando alguém consegue baixar de graça todas as propriedades intelectuais existentes, treinar um algoritmo recombinante e, assim, fazer US$ 80 bilhões, enquanto o apogeu da pirataria de verdade acontece quando esta atinge o âmago da máquina do Estado e dali passa a reescrever a história muito calmamente. Não os confunda, por favor.

Os piratas de hoje em dia em parte trabalham à moda antiga, roubando cargas e sequestrando navios, e em parte fazem algo parecido pela internet, movimentando um negócio que deve gerar cerca de US$ 265 bilhões em prejuízos em 2031. Estes últimos nunca deixam de pagar a Netflix e só vestem roupas de grife 100% genuínas.

Piratas nas águas como consequência da instabilidade local e internacional

A pirataria nas águas dos dias atuais está ligada à descolonização tardia na África. A Somália, ocupada pelos italianos e depois pelos ingleses, ganhou independência em 1960. Três décadas depois entrou em guerra civil, tornando-se ingovernável.

"Uma manifestação da ausência de Estado tem sido a completa ausência de uma guarda costeira ou marinha para patrulhar as águas do país" (Moller, B, 2009, p. 2). Piratas somali atacam navios na costa do seu país e em vastas porções do oceano Índico, incluindo o Golfo de Áden, que conecta o Mar Vermelho ao Mar da Arábia, por onde circulam milhares de navios que atravessam o canal de Suez.

Sua especialidade é o sequestro das embarcações e de seus tripulantes. O valor médio de resgate passa de US$ 5 milhões. Enquanto isso, na costa atlântica, piratas nigerianos fazem o mesmo, mas também roubam carga, especialmente óleo. Esta operação é complexa, envolvendo o uso de uma segunda embarcação para a qual o óleo é transferido, antes de ser desembarcado e negociado nos mercados local e internacional.

Assim como nos séculos 17 e 18, a pirataria atual está intimamente ligada ao Estado. Tanto no oceano Índico quanto no Atlântico, a corrupção é a cola do negócio. Mas não só ela. A pobreza também tem papel crítico. Na Somália, a pirataria explodiu enquanto a guerra civil ganhava força e o país galgava degraus em direção ao posto de mais pobre do mundo.

Muito atuantes, os piratas da região chegaram a dar US$ 18 bilhões de prejuízo/ano. Isto levou ao estabelecimento de uma força-tarefa internacional que conseguiu inibir sua atuação. Tal movimento foi contíguo ao crescimento da pirataria na Nigéria, palco de 90% dos sequestros de embarcações em 2018-2019.

A miséria nigeriana é agravada pelo fato de que as gigantes petrolíferas instaladas nas cidades litorâneas praticamente só contratam estrangeiros. O conflito social levou ao fortalecimento do grupo insurgente MEND (Movimento para a Emancipação do Delta da Nigéria), que adquiriu papel central na conexão dos vários eixos do ecossistema pirata e no reforço à ideia de que esta atuação é legítima, dada a maneira como as multinacionais do petróleo se relacionam com a população e o meio ambiente.

É possível escutar ecos de Samuel Bellamy, pirata do século 18, conhecido com o Robin Hood dos mares, no discurso destes piratas e na relação estabelecida com a população local.

O que está acontecendo neste momento é o renascimento da pirataria somali, causada pelo deslocamento das forças de combate internacionais (em sua maioria americanas e britânicas) para o Mar Vermelho em função dos houthis (xiitas do Iêmen que atacam embarcações).

Isto não deveria causar surpresa: uma característica atemporal da pirataria é que ela aumenta com os conflitos internacionais. Vale incluir este elemento nas projeções político-econômicas dos próximos anos.

Piratas digitais

Os verdadeiros piratas digitais são os sequestradores de bancos de dados. Os números impressionam: 623 milhões de ataques em 2021, resgastes na casa dos milhões. A principal ferramenta de trabalho no setor é o ransomware, software multifuncional que encontra brechas, invade e controla computadores à distância, bloqueia acessos e também serve para a negociação do resgate, objetivo principal de quem se dedica à atividade.

A principal quadrilha da atualidade, LockBit, acaba de ser desmantelada, após atingir mais de 15 mil alvos. Investigações mostram que operava sob forte estrutura organizacional. A LockBit desenvolvia a tecnologia e a licenciava para os "afiliados", que efetivamente executavam as ações.

A matriz recebia um pagamento adiantado e 20% do prêmio do sequestro. A LockBit tinha um plano de marketing agressivo, focado na divulgação das diferentes versões do seu software e no fortalecimento da marca, o que envolvia o pagamento de US$ 1.000 para quem tatuasse "LockBit" no corpo. Milhares fizeram-no.

Isso tudo não é indicativo da ação de piratas, mas sim de organizações criminosas. Aí moram as sutilezas que levaram agências criminais a patinarem no passado. As quadrilhas de ransomware costumam ter vida curta, de cerca de três anos.

Conforme a repercussão de suas ações aumenta e, com ela, a repressão policial, tendem a se desfazer. Seus líderes partem então para a criação de novas gigs, usando variações dos procedimentos originais.

Esses líderes são os verdadeiros piratas da internet. Sua forma de atuação é oposta à do PCC e afins, onde a liderança é estável e plenamente reconhecida. Tanto é assim que o líder do LockBit, um sujeito identificado como LockBitSupp, ofereceu US$ 1 milhão para quem conseguisse desmascará-lo: "Eu pago US$ 1 milhão de dólares e nem um centavo a menos para quem conseguir registrar aqui meu nome e sobrenome", escreveu em 2022.

O FBI foi mais generoso e ofereceu dez vezes este valor. Alega-se que o sujeito foi identificado. Mas pode ser alarme falso.

Hackers que fizeram parte do REvil, grupo que hackeou a JBS e recebeu US$ 11 milhões de resgate por isso (2021), hoje estão envolvidos com a LockBit. Aquilo que é chamado de organização criminosa não passa da tripulação dos navios digitais que estes piratas utilizam para saquear a internet, enquanto por ela surfam os desavisados.

Assim como em outras formas de pirataria, a relação ambígua com o Estado é a regra. REvil e LockBit têm sedes na Rússia, enquanto afiliados recém-encarcerados tinham o país e a Ucrânia como endereço de residência, reforçando a tese apresentada na seção anterior: a instabilidade é por onde navegam os piratas.

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