Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Mar se torna novo campo de batalha internacional

Redefinição de fronteiras marítimas, tensões geopolíticas e aquecimento global ampliam protagonismo dos oceanos

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Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

Reza a lenda das frases inspiradas que Arthur Clarke certa vez disse: "quão inapropriado é chamar este planeta de Terra, quando seguramente ele é um Mar".

Essa lógica deveria se estender às nossas perspectivas sobre conflitos e tendências. Assumir que as forças que alteram o curso do status quo são as que levantam poeira é intuitivo. Porém, um foco excessivamente telúrico pode obliterar o reconhecimento de mudanças fundamentais que têm o mar como pivô.

Os Estados Unidos acabam de estender seus domínios em 1 milhão de quilômetros quadrados. São mais de duas Califórnias incorporadas dentro de uma lógica global de redefinição de fronteiras marítimas, em função de novas tecnologias exploratórias, tensões geopolíticas e do aquecimento global.

Um dogma fundamental da guerra acaba de ser alterado: até este momento, para se realizar um bloqueio naval relevante era preciso uma Marinha e, de preferência, um país. Os houthis inauguraram a era em que isso deixa de ser necessário. No background, está o fato de mais de 80% de todo o comércio internacional ser marítimo e de a pandemia ter mostrado que a logística global é muito mais frágil do que assumíamos.

Helicóptero militar houthi voa sobre navio de carga no Mar Vermelho - 20.nov.23/via REUTERS

Militares americanos e chineses entreolham-se pelas lunetas. Entre eles, impõem-se 4.000 km de águas salgadas, das bases do Alasca e até as da costa norte da China, e mais do que o dobro disso entre os principais centros militares de ambas as potências. Parte relevante dos cálculos bélicos que fazem inclui suas respectivas esquadras, as quais estão sendo repensadas tecnologicamente. Enquanto isso, dezenas de cidades importantes preparam-se para serem engolidas pelas águas.

O mar está revolto e seu protagonismo não para de crescer.

Disputas por áreas de exclusão econômica crescem com o declínio da globalização

Se pegarmos um barco em direção ao alto mar, seguiremos em território nacional por 22 km. Este trecho, chamado de mar territorial, bem como os 348 km seguintes, fazem parte da zona econômica exclusiva (ZEE), balizando os direitos de exploração da nação costeira. Dali em diante, entramos em águas internacionais. Quem dita essas regras é a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), de 1982, que o Brasil ratificou seis anos depois.

A gente possui pequenas ilhas que estendem os limites do país dramaticamente: no Nordeste, temos o arquipélago de São Paulo e São Pedro, a quase mil quilômetros de Natal e, no Sudeste, a Ilha da Trindade, que está a 1.140 km de Vitória e a apenas 2.400 km da costa africana.

A UNCLOS prevê que as diferentes nações possuem direito exclusivo de exploração do leito do mar das ZEEs, desde que este tenha até 200 metros de profundidade. O nome desta área explorável é plataforma continental.

Acontece que várias destas plataformas transcendem os limites da ZEE, projetando áreas de valor inestimável para além dos 370 km previstos. Nestes casos, os interessados devem pleitear a extensão de sua plataforma continental, ponto a ponto.

O Brasil, que não marca touca nessa história, reivindicou a extensão de suas águas territoriais de 3,6 para 5,7 milhões de km, dando origem ao que vem sendo chamado de Amazônia Azul. Isso explica porque, na costa do outro lado, o entendimento é que uma parte imensa do Atlântico não passa de uma reserva de valor brasileira, como escutei de especialistas africanos, em visita ao continente. A jogada americana é parecida, com um detalhe: o país não é signatário da UNCLOS.

Além do gigantismo e valor das áreas em processo de incorporação, o que aproxima os dois casos é o fato de que as águas não estão em áreas de disputa. Em outras partes do mundo, a situação é diferente.

Diversos países estão pleiteando a extensão de seus domínios no Ártico, região tradicionalmente caracterizada pela cooperação científica e articulação diplomática, sob os auspícios do Conselho do Ártico, uma espécie de ONU local, cuja autoridade está sendo corroída. O clima na região está se alterando com a maior velocidade do planeta, tornando os mais de 90 bilhões de barris de óleo inexplorados que existem ali mais acessíveis dia a dia.

Cerca de 50% da costa do ártico é território russo, e a UNCLOS reconhece que o país tem direitos soberanos sobre o mar ao norte da Sibéria, desde que este esteja coberto por gelo na maior parte do ano. Mas, como o gelo vem sumindo, os entendimentos vêm se tornando cada vez mais divergentes, o que é agravado pela disrupção do diálogo ocasionada pela invasão da Ucrânia.

Dado que (1) a Finlândia entrou na OTAN, (2) a Suécia está prestes a fazê-lo, (3) os russos aliaram-se aos chineses, num grande projeto de infraestrutura e gestão de rotas locais, e (4) a cooperação para reduzir as emissões foi substituída por planos nacionais de extração de hidrocarbonetos e militarização crescente, é provável que estas águas tornem-se centrais para o acirramento rápido e convergente da crise do clima e da globalização (para entender, acesse).

A instabilidade é ainda maior no Mar da China Meridional, também rico em hidrocarbonetos, por onde circulam cerca de um terço de todo o comércio internacional, além de 10/12% da pesca global, fator este que não pode ser menosprezado. "Com a pesca às vésperas de colapsar, tornou-se crucial assegurar o acesso a maior quantidade possível da vida aquática remanescente", afirma o relatório "Disputa de Pesca no Mar da China Meridional".

Estas águas são repletas de pequenas ilhas, como as minúsculas Spratly, que "possuem importância estratégica para todos os Estados da região porque permitiriam direitos de exploração por águas em que navios comerciais precisam navegar quando seguem dos ou para os portos do sul da Ásia" (Joyner, 1999, p. 57).

Os malaios estão usando o argumento do Brasil e dos EUA para pleitear a extensão de sua ZEE, dada a continuidade entre a plataforma continental subjacente ao seu litoral e parte das ilhas disputadas.

Acontece que a plataforma vietnamita também se estende até as Spratly, que estão sendo pleiteadas por Brunei pela mesma razão. Filipinas, Vietnã e Taiwan igualmente disputam a ZEE, mas o elefante na água é mesmo a China, outra potência não signatária da UNCLOS, que adota sua própria régua de direitos, conhecida como Linha das Novas Raias (1947), a qual lhe confere controle quase total sobre o Mar da China Meridional, avançando sobre diferentes ZEEs.

Desde 2013, os chineses vêm construindo ilhas artificiais em torno das Spratly e as convertendo em bases militares. A Marinha americana está mobilizada na região, assim como a indiana, a indonésia e outras.

Muito em função destas águas, os filipinos voltaram a abrigar bases militares americanas, as quais são essenciais para a modelagem dos teatros de guerra no caso de haver invasão em Taiwan. As hostilidades navais crescem a ponto de muitos analistas estarem apontando o Mar da China Meridional como o locus mais provável para a eclosão da próxima guerra de grandes proporções, independentemente do que ocorra no estreito de Taiwan.

A novidade trazida pelos Houthis

O Canal de Suez é uma das rotas mais marítimas mais importantes do mundo: 12% de todo o comércio global passam por ali. Para entrar no canal é preciso passar pelo estreito de Bab al-Mandab, no sul do Mar Vermelho, o qual possui só 29 km de extensão, em sua parte mais exígua.

Os houthis são xiitas do Iêmen que estão atacando embarcações no estreito e na região. O grupo pleiteia o fim da guerra em Gaza e diz mirar navios ligados a Israel, mas fato é que até uma embarcação russa foi alvejada.

A agenda dos houthis tem mais do que a solidariedade com os palestinos e sua umbilical relação com o Irã, estando também ligada aos seus planos de emergir como expoente insurgente, o que de fato está acontecendo, com a ajuda das redes socais.

Agora, o que realmente coloca os houthis no mapa das grandes mudanças em curso é o fato de estarem tendo sucesso na missão de debilitar as redes logísticas que abastecem o Ocidente sem uma armada e, em estrito senso, sem um país, dado que controlam apenas partes do Iêmen. No lugar disso, os rebeldes contam com mísseis balísticos antinavios (novidade de impacto), quantidades imensas de drones de alta precisão (idem) e sistemas avançados de localização.

Tecnologias bélicas de difícil acesso estão se tornando acessíveis e baratas, sugerindo que ações como esta dos houthis serão cada vez mais comuns. Esse é o ponto que mais interessa.

As empresas de frete e seguro não estão topando circular pelo canal de Suez, de modo que os navios precisam passar pelo Cabo da Boa Esperança, ao sul da África, o que aumenta a duração média das viagens em 25%. Como a maioria das fretadoras trabalha com capacidade total, o efeito prático é equivalente ao do desaparecimento de um quarto dos navios que nos abastecem.

A sombra da escassez cresce, levando vários governos a emitir alertas inflacionários. No caso americano, a situação ganha ainda mais relevo, dado que os democratas contam com a economia para vencer as eleições de novembro. Ainda há chances de um cessar-fogo em Gaza, acompanhado de um arrefecimento dos ataques em Bab al-Mandab, mas assumir que as coisas voltarão a ser como antes é querer se iludir.

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