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Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

Psicólogos superam economistas em estimativas eleitorais

Apostas e pesquisas podem ser comparadas em sua capacidade de prever resultados de eleições

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A onipresença das coisas ao nosso redor muitas vezes nos leva a acreditar que são muito antigas. Os questionários, por exemplo, parecem arcaicos em sua simplicidade e generalidade. No entanto, eles foram inventados apenas na década de 1870 por Francis Galton, que hoje é mais lembrado por suas ideias eugenistas do que por suas contribuições à ciência.

Estimativas eleitorais, até então, baseavam-se em bolsas de apostas, as famosas bets. Uma banca que paga R$ 1 para cada R$ 0,24 apostados em Ricardo Nunes e R$ 0,23 apostados em Guilherme Boulos está indicando que, para os apostadores, Nunes tem 24% de chances de vitória e Boulos, 23%. O paradigma é comportamentalista: importa o que as pessoas fazem e não o que alegam querer.

Contagem de votos em Clacton, no leste da Inglaterra - AFP

Essa prática foi dominante até a década de 1940, quando as metodologias da psicologia começaram a ser incorporadas pela antropologia e pelo marketing, como argumenta Justin Wolfers, da Universidade de Michigan. Aqui, as premissas são opostas: a dimensão-chave é a preferência e o método é a interpelação, sob a premissa de que, em amostras representativas dos votantes, as intenções mapeadas servem de proxy ao comportamento a ser exercido nas urnas.

O método dos questionários pressupõe que as pessoas têm (1) preferências consistentes, (2) condições de acessá-las e (3) disposição para compartilhá-las. Isso nem sempre é verdade. O desafio mais notável é sobre a inferência de preferências, especialmente quando o sujeito precisa fazer escolhas em série.

A questão é que há um viés inscrito na própria estrutura do sistema decisório humano: após tomarmos consciência de que preferimos algo em relação às alternativas, sentimos que isso reflete uma verdade profunda sobre como enxergamos o mundo e as opções em pauta. No entanto, estudos originalmente conduzidos nas décadas de 1970 e 1980 e replicados centenas de vezes demonstram que, em parte, essas mesmas preferências são construídas no momento da escolha, ou seja, não refletem verdade profunda alguma.

Essa propriedade do cérebro-mente torna as preferências influenciáveis pela maneira como cenário e opções são expostos. E não adianta muito perguntar se o respondente está convicto de sua resposta, pois ele muito provavelmente irá superestimar o "sim", mesmo quando a alternativa contradiz posicionamentos assumidos anteriormente.

Uma solução parcial é usar ferramentas das neurociências para prospectar inclinações sem passar pelo crivo da formalização das preferências por meio de opções em uma página. Ajuda, mas dá trabalho e cria uma aura de mistério em torno dos resultados gerados. Outra é dar mais importância às estimativas eleitorais de institutos bem-estabelecidos.

Com ou sem neurociências, o curso dessa história sofreu uma nova reviravolta com a publicação do best-seller "A Sabedoria das Multidões" (2004), no qual James Surowiecki argumenta que os mercados são as ferramentas mais poderosas existentes para captar tendências societárias.

O livro de Surowiecki é muito agradável de ler e traz vários exemplos de situações em que uma multidão ou um "mercado" superou as estimativas dos melhores especialistas. O ponto de partida é uma anedota da vida de Francis Galton, que era fascinado por mercados preditivos. O autor conta que, em 1906, o estatístico inglês foi a uma feira agropecuária em que havia um torneio: ganharia quem oferecesse a melhor estimativa do peso de um boi. O animal pesava 1.198 libras e a estimativa média dos 796 participantes foi 1.197 libras.

Outro caso ilustrativo é o do talk show Who Wants to Be a Millionaire, ainda em exibição, no qual os participantes podem apelar a pessoas específicas para os ajudar com uma resposta ou à plateia. Conforme Surowiecki mostra, aqueles que optam por falar com um especialista ou familiar acertam 65% das vezes, enquanto os que apelam à plateia têm 91% de êxito.

Isso tudo refletiria a sabedoria da multidão, conceito que em determinado momento adquiriu ares místicos. A acurácia defendida por Surowiecki decorre da chamada hipótese do mercado eficiente, a qual afirma que os preços agregam todas as informações disponíveis, de modo que ninguém pode sistematicamente superar o mercado. O fato de a banca pagar R$ 1 para cada R$ 0,24 de Nunes ou Boulos significa que a totalidade das informações disponíveis, incluindo as pesquisas e notícias, resultam em 24% de chances para o candidato.

Um estudo independente de 2004 deu ânimo à hipótese. George W. Bush e Al Gore se enfrentaram nacionalmente, nos Estados Unidos, em 2000. Comparando os resultados das pesquisas da Gallup e o comportamento de um dos principais mercados de aposta americanos (o Iowa Electronic Markets), os autores mostraram que as apostas se saíram melhor e também indicaram mais cedo o vencedor por margem relevante.

A quantidade de mercados preditivos explodiu nos Estados Unidos depois disso. Porém, o vento novamente mudou de direção na segunda metade da década passada, quando Hillary Clinton estava sendo negociada numa base de 7-2 em relação a Donald Trump nos mercados preditivos americanos, mas acabou perdendo. Nas eleições parlamentares americanas de 2022, os mercados tiveram novo desempenho ruim, enquanto um estudo experimental de 2019 mostrou que "instrumentos declaratórios conseguem capturar informações que o mercado não consegue".

Além das pesquisas terem evoluído muito na última década, a hipótese da eficiência dos mercados de apostas eleitorais não está correta —possivelmente, ela é mais equivocada do que a de que as pessoas sabem acessar suas preferências e têm disposição para compartilhá-las.

Não é verdade que os apostadores são agentes puramente racionais que não deixam suas apostas serem contaminadas por suas preferências. Pelo contrário, as pessoas preferem apostar dinheiro em desfechos que lhes parecem favoráveis do que no contrário. Se nossas rifas previssem as seleções vitoriosas nas Copas do Mundo, o Brasil seria campeão todas as vezes. Essa afirmação encontra suporte em um estudo de 2018, no qual os autores demonstraram que "fãs com alto grau de envolvimento apresentam vieses em sentido ao seu time favorito, quando fazendo previsões de desfechos".

Mercados preditivos atraem um perfil específico, o profissional do mercado financeiro, que é predominantemente rico e masculino e, como todo o resto, acha que seu ponto de vista é universal. Também é fato que esse público se posiciona mais à direita do que a média da população, o que pode explicar por que Trump está sendo transacionado no Polymarket como se tivesse 65% de chances de vitória.

O favorecimento ideológico por vezes assume contornos bizarros. Por exemplo, nas eleições de 2020, Trump era favorito em quase todos os mercados, enquanto Biden ocupava essa posição na maioria dos estados-pêndulo, sendo que esses estados decidem a eleição. Se o mercado fosse racional, isso jamais ocorreria.

Para piorar, "as eleições ocorreram em 03/11. Em 07/11, toda a mídia havia declarado Joe Biden o vencedor do pleito. Ainda assim, em meados de dezembro, contratos de mercados preditivos em estados como Geórgia, Michigan, Arizona e Pensilvânia estavam listando Biden a 90 centavos (ou 90% de chances de vitória)" (Johnson, 2024). Traduzindo, o mercado atribuía 10% de chances às tentativas de Trump de reverter os resultados da eleição, uma taxa para adorador de pneu algum botar defeito.

Isso significa que o comportamento mercadológico é pouco informativo? De forma alguma. Para começar, esses mercados envolvem muito mais temas eleitorais do que aqueles que se sobrepõem às pesquisas. Além disso, eles parecem ser menos sensíveis a cortinas de fumaça e mesmo ao autoengano do que o noticiário, embora isso ainda precise ser comprovado.

Por exemplo, os negociadores do Polymarket não acreditaram quando Biden disse que seguiria na busca pela reeleição. No dia em que ele afirmou "com toda clareza possível, irei permanecer na corrida", suas chances de abandono terminaram o dia precificadas em 66%.

Outro fator interessante dos mercados preditivos é a natureza dual do sinal de preços. Explico. Quando dizemos que o candidato A tem 46% de intenção de voto, estamos afirmando algo de natureza unidimensional, no domínio das preferências declaradas, afinal, os outros 54% podem votar em outro(s) candidato(s), anular, votar em branco ou simplesmente não votar.

Já a lógica dos mercados preditivos é bidimensional: quem tem fichas do candidato A pode definir um preço de venda para elas, da mesma forma como quem vê as ofertas compra se quiser. Dois preços importam: o menor preço de venda na atualidade e o preço exercido na última transação. A discrepância entre ambos é um bom sinal de incerteza, uma dimensão de difícil captação.

Finalmente, a própria divergência entre os mercados e as pesquisas é bastante relevante. Conforme ela diminui, a confiabilidade dos resultados aumenta e vice e versa.

Por isso tudo, concordo com Dana et al quando dizem que "muitos psicólogos se surpreendem com a acurácia das estimativas baseadas em preços e muitos economistas se surpreendem com o quanto perguntar é informativo", ainda que o balanço atual penda mais para esses últimos, conforme os dados e o próprio mercado, que compra mais pesquisas do que se guia por apostas, revelam.

A principal razão é que, no mundo dos questionários e suas variações, a irracionalidade humana é tratada abertamente e caminhões de esforços são depositados para tentar mitigar isso um pouco.

Em contrapartida, as inferências de natureza mercadológica continuam presas à tese sabidamente equivocada de que basta haver um conjunto de pessoas colocando um dinheirinho na mesa sem muita regulação para que maravilhas aconteçam. Se apostas em mercados preditivos fossem parte dos portfólios de grandes investidores institucionais, talvez até fosse o caso, mas o modelo atual das bets está bem longe disso.

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