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Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

Transgrido a minha natureza, por isso corro

Não corro pela meta, o melhor acontece no trajeto

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Minha preguiça usa um ótimo argumento: "respeite a sua natureza, deixe a vontade aparecer". Mas aí entra uma outra voz dizendo "não se renda à sua natureza", ecoando o pensamento típico Kantiano de que o progresso humano envolve transcender limitações naturais e condicionantes.

É nesse embate que a corrida entrou na minha vida.

Meu corpo não foi moldado para correr, por isso corro. Corro porque vivo entre a rebeldia e a obediência, porque sou ócio e presteza ao mesmo tempo.

Pela coerência das minhas contradições, há décadas, insisto na corrida.

Não corro apesar das minhas limitações, mas por causa delas: corro para contrariar os meus impulsos, as minhas preguiças, as minhas compulsões, os meus vícios.

Nem sempre sigo meus instintos. Sigo outras regras, sem briga, deixando que elas se infiltrem pelas beiradas. É só assim que podemos nos tornar o que ainda não somos e garantir que não sejamos apenas o que aparentemente fomos feitos para ser.

Corro pela liberdade que a disciplina me dá. Pelo prazer do desconforto e da dor. Corro pela endorfina, pelo direito ao silêncio e à solidão.

Quando corro, me desgarro de mim; por isso, digo que corro de mim e para mim.

Não fui feita para grupos, gosto de correr sozinha, sem música. Na areia, descalça; no asfalto, sem rota, apesar de ter as minhas trilhas prediletas. Não tenho fôlego interno para conversas externas: sou antissocial nas horas em que me basto.

Às vezes corro mais rápido para que meus pensamentos não me alcancem. Outras vezes, os pensamentos são mais espertos e mudam de direção para me pegar de frente, quando sou obrigada a diminuir o ritmo para fazer alguns ajustes de contas com eles.

Corro com simplicidade e até com uma certa timidez. Sou a observadora, não o foco, assim descanso de mim. Preservo as meias furadas no dedão, o tênis antigo, as camisetas largas.

Já me perdi em ruas desconhecidas, quebrei dois ossos, convivo com bolhas nos pés —o sublime emerge justamente do desconforto, da extenuação e da imprevisibilidade. A falta de ar me faz valorizar o oxigênio, e assim não me esqueço de agradecer o ar que respiro de graça.

Aprendi, na pandemia, a correr na rua, sufocada pela máscara, para fugir do sufoco da família —e pela felicidade dobrada de voltar depois ao que mais me importa na vida.

A corrida é o meu antidepressivo, minha meditação. Mas corro também pela matéria, por razões fúteis. Para cuidar da forma, me vingar das calorias, pelo prazer físico de um banho gelado. Corro pela disposição que a corrida dá ao meu corpo para sentir outros prazeres.

A corrida suga o meu colágeno e antecipa a flacidez da pele que veste um espírito rejuvenescido. Correr tem o seu preço, é, portanto, uma escolha entre o que se quer e o que se quer mais.

Não corro pela meta, o melhor acontece no trajeto. Não corro por modismo nem pelas fotos ou medalhas. Não corro para ultrapassar os outros: sou a minha maior adversária. Por isso, sou sempre a ganhadora e a perdedora ao mesmo tempo, aprendendo de ambas.

Corro porque, se me conformar com o que sou e com meus joelhos inadequados, vou me tornar pior do que sou e deixarei os joelhos ainda mais fracos.

Corro para que os poros respirem melhor, para que a cabeça funcione melhor e para que os líquidos transitem melhor. Meu suor é o que me rega.

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