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Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

Será que mora dentro de cada um de nós aquela vizinha que faz 'shhhh'?

Mesmo com a liberdade para arrastar móveis de madrugada ou botar um mambo nas alturas, agora ela pelo visto me habita

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A vassoura era sua mais terrível arma e Dona Dinah não tinha escrúpulos. Baixinha, ela descalçaria as pantufas, subiria numa cadeira e, com o temido cabo, cutucaria o próprio teto. Também conhecido como: chão do nosso apartamento. Bastava que um de nós abrisse a boca, emitindo a nota decisiva que viria a ferir seus sensíveis tímpanos.

Ou pelo menos era assim que tudo se dava na minha cabeça, eu já sabendo da fama da vizinha de baixo. Por todos os andares, aliás, uma mesma frase ecoava. Não muito alto, é claro, pois ai de quem se metesse a besta ultrapassando o limite de decibéis: “Dona Dinah vai reclamar!”.

A política antirruído do prédio era tão rígida que os moradores viviam com os nervos à flor da pele. Não importa o que fizéssemos, tudo era delito em potencial. Ver novela. “Shhh.” Jogar cartas (e ganhar, animadamente). “Shhh.” Bater pique no corredor. “O quê? Vocês não têm amor à vida? Preferem se ver com Dona Dinah?”

Lêda, minha tia-avó que morava sozinha no 201, foi punida. E com lágrima nos olhos, se desfez de Jorginho, seu amado canário belga. Não pela crueldade da gaiola, mas porque cantava bonito demais.

Logo depois, Vera Lúcia, inquilina simpática e conversadeira, descobriu que Dona Dinah usava aparatos de espionagem. “Ela encosta um copo na parede, para ouvir o que a gente fala.” Imagine o pega-pra-capar. Quem tinha algum segredo —de amante a ligação com o Partido Comunista— tremeu.

Forçada a brincar de cinema mudo com minhas Barbies, comecei a desconfiar de que havia furos naquela mitologia quando reparei nos adultos repreendendo seus filhos justamente aos gritos. “Paaara, Paulo Henrique! Dona Dinah vai reclamaaar!” Mas cadê coragem de tirar a prova dos nove? Feito soldado que leva 30 anos até perceber que a guerra acabou, mantive-me firme em meu posto de terror. Só adulta confirmei que nossa inimiga número um havia se mudado tempos antes —e os condôminos sem dar um pio, transformando-a num avatar coletivo.

Desde então, lidei com todo tipo de poluição sonora. De pianistas mirins a fungadores matinais. Até que vim morar numa casa. Ninguém embaixo ou em cima. Apenas liberdade para arrastar móveis de madrugada, botar um mambo nas alturas ou andar de patins pela sala, se me desse a louca. Nunca deu. Dona Dinah, pelo visto, agora me habita. Menos cri-cri, mas dançando de meias. Vassoura nunca mais.

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