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Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

Descrição de chapéu

Queriam uma discípula de Nelson Freire, mas eu era a gata pianista do YouTube

Nem todo mundo tem mão boa para o que se espera, e está tudo bem

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Eu deveria me concentrar em Schubert. Em Debussy. Ou pelo menos no que meus dedos estavam fazendo. O problema é que, a cada movimento mais brusco, os bisnetos de Dona Yolanda ameaçavam despencar em cima de mim. E não só eles: também o vaso de flor e o paninho de crochê que minha implacável professora mantinha em cima do piano.

O adágio dessa angústia começou quando cismaram que eu tinha bom ouvido e devia aprender a tocar. Mas com o advento das vitrolas, sons três-em-um e players em geral, a maioria das famílias de classe média já havia perdido o hábito dos antigos saraus. Lá em casa mesmo, o Steinway servia de armário na sala, apoiando copos, porta-retratos e todo tipo de cacareco, como o Essenfelder de Dona Yolanda.

Num trocadilho baseado em fatos reais, posso dizer que éramos 8 ou 80, posto que 72 anos nos afastavam em idade. Enquanto ela almejava me transformar num jovem prodígio, eu só queria tirar alguns hits da Turma do Balão Mágico.

Publicada neste domingo, 14 de novembro de 2021 - Marcelo Martinez

No trajeto a pé entre minha casa e meu treinamento, eu fazia o dever catimbado até o último minuto, escrevendo no caderno pautado as claves de sol mais tristes e tortas. Abríamos o piano num ritual de adoração para ela e de puro sofrimento para mim. Retirávamos a faixa de veludo que protegia as teclas e deixava subir um cheiro de mofo. Com seu anel de mindinho em riste, Dona Yolanda dizia "dóóó" e começávamos a quatro mãos.

Aliás, que mãos? "Isso aí são dois tijolos. Pianista usa a ponta dos dedos." Eu juro que tentava, mas eram as falanges de uma criança sem talento. "Idade não é desculpa. Aos seis anos Mozart se apresentava para a Imperatriz da Áustria!"

Luizinho, o garoto do edifício atrás que aprendia teclado com outra professora, tocava lindamente todos os piuís abacaxis do grupo Trem da Alegria. E Beethoven se revirando no túmulo, por sorte surdo, enquanto eu destruía "Für Elise".

A esta altura da história, após tantas aulas, eu deveria oferecer uma lição de moral sobre o valor da persistência. Concluindo que a rigidez de Dona Yolanda moldou meu caráter. Porém, se a expectativa era "discípula de Nelson Freire", a realidade foi "pior do que Nora, a gata pianista do YouTube". Um concerto impossível.

Decidido que o único arranjo ali era a fuga, meus pais me deram então uma máquina de escrever. E as mãos que nunca foram delicadas para o piano puderam massacrar outras teclas. Encher outros cadernos. O que para mim, além de alívio, até hoje é superfantástico.

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