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Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Temos que procurar em nós traços da herança que faz a força do neofascismo

Mais importante do que descobrir de onde vêm os fascistas é ter a coragem de perguntar de onde pode vir o fascista em nós

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Várias noites seguidas, li até altas horas da madrugada o livro de Antonio Scurati, "M. O Filho do Século" (ed. Intrínseca). Era difícil parar. Depois da primeira noite insone de leitura, acordei cantarolando "The Woman in Me" (a mulher dentro de mim), de Shania Twain.

Como sabem seus já muitos leitores, o livro de Scurati é uma biografia de Benito Mussolini de 1919 a 1924, os anos em que ele inventou o fascismo e que o levaram a governar a Itália.

O método de Scurati consiste em se basear sempre em documentos públicos e privados (alguns inéditos, aliás) e, a partir desses, reconstruir cenas, situações, encontros, pensamentos e intenções.

O leitor adentra o texto como numa ficção, mas ele está, de fato, acessando as próprias fontes da história.

O resultado foi um extraordinário sucesso, mundo afora.

Scurati prevê quatro volumes até a queda do fascismo. O segundo, "M. L'Uomo Della Provvidenza", ou M., o homem providencial —de 1925 a 1932, acaba de ser publicado em italiano. Adquiri o livro em pré-venda, para recebê-lo quanto antes, e já chegou. Espero que a Intrínseca já esteja preparando a tradução em português.

O método e a arte de Scurati explicam, sem dúvida, o merecido sucesso. Para minha geração de italianos, há mais uma razão: somos os últimos para quem a oposição entre fascismo e antifascismo foi o critério formador decisivo.

Mas não é só isso —e é aqui que se explica a estranha aparição de Shania Twain e "The Woman in Me" depois de uma noite em que tive que me esforçar para deixar de ler antes que o dia raiasse.

Explico. Scurati é antifascista, sem a menor complacência com a brutalidade e a vulgaridade fascista.

Mas o efeito que a leitura do livro teve em mim (efeito proposital ou acidental, não sei) não foi ideológico (adesão, recusa, indignação etc.): para mim, foi impossível ler "M. O Filho do Século" sem pensar constantemente numa dimensão, digamos assim, coletiva da responsabilidade.

Sim, certo, a chegada do fascismo ao poder (e sua persistência lá) foi permitida ou facilitada por uma série de pequenas ou grandes covardias (do rei, de uma parte do empresariado etc.), mas ela não teria sido possível se a própria feiura do fascismo não tivesse seduzido e conquistado a massa dos italianos.

Não estou aludindo apenas ao fato de que a maioria dos italianos foi, de fato, fascista —esse é um fato comprovado.

Mas, muito além desse consenso (e fenômeno mais inquietante), o fascismo se insinuou nos corações e nas mentes de quase todos, inclusive nas fileiras da própria militância antifascista.

É como se cada italiano tivesse sido seduzido por ao menos um traço do regime, da doutrina e da militância.

Houve os que eram atraídos por um patriotismo ufanista, os que achavam "viril" a violência assassina da milícia, os que perdoavam sua ignorância graças ao anti-intelectualismo fascista, os que autorizavam assim seu próprio racismo, seu machismo, sua boçalidade.

Mais do que qualquer outra história do fascismo que eu li, a obra de Scurati leva o leitor a interrogar o fascista nele mesmo. Qual parte de mim teria sido conquistada pela fúria insensata desse horror? Quem é o fascista em mim?

Por isso, a leitura de Scurati é insubstituível hoje no Brasil, nos Estados Unidos e nos países do mundo onde uma tentação autoritária ou totalitária encontra um apoio popular.

Para não nos rendermos à boçalidade e vulgaridade dos tempos o que pode nos ajudar não é a pergunta sobre "os outros".

Claro, é útil (sobretudo em clima eleitoral) perguntar-se de qual fracasso cultural, econômico e moral se alimenta a popularidade de um conjunto de governantes de extraordinária mediocridade.

Também é útil tentar entender em quais anseios e medos se alimenta o espírito de grupo dos militantes neofascistas. Mas nada disso adiantará se não ousarmos olhar no espelho e procurarmos na nossa cara os traços da mesma herança histórica que faz a força atual de um neofascismo.

Ou seja, o que importa não é tanto descobrir de onde vêm os fascistas, mas ter a coragem de perguntar de onde pode vir o fascista em nós.

No Brasil, esse é o momento de reler e meditar o admirável conjunto de textos dos ditos intérpretes do Brasil (do começo de século 20 a hoje) —e, lendo, de admitir que o bolsonarismo talvez não seja um acidente bizarro na nossa história mas, ao contrário, um de seus desfechos "naturais" possíveis.

ccalligari@uol.com.br

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