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Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

Drinque oficial da Semana de 22, caipirinha foi usada como remédio contra pandemia

Bebida era espécie de cloroquina nos tempos da gripe espanhola, mas virou referência com modernistas

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Em setembro de 1918, o navio britânico Demerara, vindo de Lisboa, desembarcou em Recife. Trazia cargas e passageiros, como de hábito, mas também o vírus da gripe espanhola. De lá foi para Salvador e Rio de Janeiro. Em pouco tempo, a doença que infectou um quarto da população mundial à época se alastrava pelo Brasil.

No interior paulista, anunciava-se a solução à boca miúda: suco de limão, alho, mel e, para potencializar o efeito da mistura, cachaça. Era uma cloroquina raiz, autêntica, há muito receitada contra a gripe comum. Se não curava, ao menos levantava os ânimos. Poções mágicas bem semelhantes foram usadas também para combater a febre amarela e a cólera.

Debelada a gripe espanhola, que levou consigo de 17 a 100 milhões de vidas —as estimativas variam muito por conta de fatores como a Primeira Guerra Mundial— aquele remédio caipira ganhou nova coloração, mais prazerosa: o açúcar, mais fácil de encontrar, substituiu o mel e, em lugar do alho, não mais necessário, gelo para espantar o calor.

Há outras histórias sobre a origem do drinque nacional por excelência. De acordo com o historiador Luís da Câmara Cascudo, no século 19, fazendeiros da região canavieira de Piracicaba teriam criado o coquetel, então servido em grandes eventos, como alternativa para o uísque e vinho europeus.

Outra versão conta que muito antes, em Paraty, marinheiros usavam essa mistura para combater o escorbuto. Há quem diga até que a inventora da nossa caipirinha foi Carlota Joaquina (1775-1830), que era bem chegada numa caninha.

Mas foi mesmo na Semana de Arte de 22 (que faz 99 anos em 11 de fevereiro) que a bebida ganhou o status que tem hoje. Como símbolo de brasilidade, o ex-remédio foi o drinque oficial do evento, assim como a cachaça. Os artistas de outros estados trataram de espalhar a boa nova pelo país.

Nos anos seguintes, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, que se casariam em 1926, promoveram em Paris vários encontros com pintores e escritores da vanguarda europeia. A comida era a nossa feijoada. E a bebida, claro, a caipirinha. Assim, o manifesto antropofágico estava etílica e gastromicamente bem representado. Detalhe curioso: a cachaça tinha de passar pela alfândega francesa em frascos de perfume.

Picasso se revelou um entusiasta. É tentador imaginá-lo com sua caipirinha numa mão e, com a outra, desenhando touros e mulheres nuas em um de seus cadernos eróticos. Aliás, Oswald escreveu em seu diário: “Trago rapadura de cidra e uma alma pré-homérica cheia de pinga com limão. Positivamente amanhece na vida.”

Chico e Sherlock

Feijoadas com caipirinha passaram a ocupar os almoços às quartas e sábados de pós-homéricos brasileiros (existem também os porres homéricos, mas essa é outra história). Chico Buarque, Ulisses das nossas letras, elevou a evocação oswaldiana à condição de samba obra-prima: "Uca, açúcar, cumbuca de gelo, limão/e vamos botar água no feijão", cantou em sua "Feijoada Completa". Uca é um dos inúmeros sinônimos de cachaça existentes no país.

Jô Soares foi mais longe e fez do caro Watson o inventor da caipirinha. A cena aparece no livro "O Xangô de Baker Street" e no filme de mesmo nome. O baixinho Watson está com Sherlock Holmes numa tasca brasileira. Receoso de que seu amigo não tolere a pinga pura, sugere colocar um limãozinho aqui, um pouco de açúcar ali e gelo. Estava feita a caipirinha, para espanto do taberneiro.

Aviso aos navegadores afoitos: com esse nome, seja qual for a origem, o coquetel brasileiro mais pedido no mundo é feito com cachaça e limão. Essa é a caipirinha. O resto —e tem muito resto!— pode ser bom, mas não é caipirinha, que tem até decreto oficial para não deixar dúvida quanto aos seus componentes e proporções.

Caipiroska, caipiríssima, sakerinha, de kiwi, abacaxi, caju, cajá, o que for, são derivados às vezes muito distantes do original. Elementar.

CAIPIRINHA

Ingredientes

  • 60 ml de cachaça branca
  • ¾ de limão
  • Duas ou três colheres de açúcar

Passo a passo
Corte o limão em quatro e tire o miolo. Ponha três pedaços do limão num copo comum, acrescente o açúcar e 30 ml de cachaça. Com um socador, macere o limão para liberar o suco. Coloque gelo (não use gelo moído) e complete com 30 ml de cachaça. Mexa levemente.

Erramos: o texto foi alterado

Tarsila do Amaral não participou da Semana de Arte Moderna de 1922, como afirmava versão anterior deste texto. O trecho foi corrigido.​

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