Siga a folha

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

Afinal de contas, tem graça?

Não é possível dizer quem vai poder exercer o humor sobre quem ou o quê

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

"Gregorio Duvivier ultrapassou todos os limites do desrespeito no artigo de hoje. Um lixo que ofende milhares de leitores. A liberdade de expressão implica, também, tratar com respeito a liberdade de crença de cada um. Nunca mais voltarei a comprar a Folha."

A dura mensagem que recebi resume como se sentiram alguns leitores em relação à coluna de Gregorio Duvivier publicada na Folha na quarta (11).

O texto do humorista ("Desculpem meu aramaico") respondia às manifestações críticas ao especial de Natal do coletivo Porta dos Fundos, considerado ofensivo por alguns.

A trama, exibida pela Netflix, é ambientada na festa de aniversário surpresa de 30 anos de Jesus Cristo, momento em que há duas grandes revelações: Jesus é filho de Deus, não de José, e se rendeu às tentações da carne a partir de uma perspectiva homossexual.

Em resposta a pedidos de retirada do ar do episódio, Duvivier encarna mais uma vez o filho de Deus para dizer aos críticos que Jesus é da galhofa.

Além de se sentirem ofendidos, alguns leitores chegaram a pedir que o jornal retirasse a coluna do site. 
Há limite para o humor? Sentir-se ofendido pode ser considerado um limite seguro?

O tema não é simples. O argumento de que a liberdade de expressão implica, também, tratar com respeito a liberdade de crença de cada um é sólido, mas largo o bastante para, no extremo, interditar o humor.

Quem vai dizer o que é desrespeito? Nesse sentido, o documentário "O riso dos outros", de Pedro Arantes, ajuda a pensar a questão.

A obra reveza depoimentos de humoristas e trechos de suas apresentações. Para alguns desses comediantes, o humor, em resumo, dialogaria com os "pré-conceitos"da sociedade.

A tarefa de fazer rir vai das piadas que lidam com os estereótipos de sempre, servindo, assim, para reforçar visões há muito compartilhadas, à transgressão de ridicularizar quem está em posição de poder.

De certa forma, assim pode ser lida a proposta do Porta dos Fundos. Partiu de uma figura mítica, símbolo de um poder estabelecido, para partilhar com o espectador algumas das mazelas da sociedade. 

Ao mostrar na tela a família que finge não entender quem é o "amigo" do filho, expôs, fora dela, a homofobia renitente. 

Houve até quem dissesse que mostrar um Jesus gay coloca as pessoas umas contra as outras—um batido artifício para não encarar o fato de que é a homofobia, não o humor, que cumpre esse papel.

Duvivier diz que a acusação de que o especial de Natal é ofensivo por retratar Jesus gay é, por si só, homofóbica. Quanto aos limites da liberdade de expressão, diz que, se o limite é o sagrado dos outros, vai ser impossível delimitar esse sagrado sem ser etnocêntrico ou francamente racista.

"Tudo é sagrado pra alguém", diz ele. "Minha coluna e o nosso especial são profundamente cristãos, pois retratam um Jesus de amor, como na Bíblia", diz.

Assisti ao especial. Ele fere sensibilidades? Certamente.

A questão é entender que o humor sempre carrega uma dose de crueldade, logo terá como resultado alguém ofendido. Sendo assim, seu limite não pode ser a ofensa e a resposta a ele não pode ser a censura.

O debate é um bom instrumento para dar voz aos atingidos, ainda que alguns artistas se sintam perseguidos porque hoje em dia "não é possível fazer graça com mais nada".

Talvez essa perplexidade tenha outra origem. A tentativa de fazer graça com os de sempre (o preto, o gordo, a bicha, a mulher) continua sendo livre. A novidade são as reações a isso.

Não gostar de algo e ir para o debate é legítimo. Tentar calar alguém--ou excluir um texto considerado ofensivo--não é.

Uma boa baliza para o que pode ser feito pode ser a violação da lei. Vinicius Mota, Secretário de Redação, diz que "a Folha não interfere na livre manifestação de autores de textos de opinião, a não ser em caso de cometimento de crime".

Mota diz também que a coluna soou ofensiva para uma parcela dos leitores, mas o modo de o jornal lidar com esse fato é publicar reações críticas ao texto do colunista, como ocorreu no Painel do Leitor da edição de quinta-feira (12).

Não é a primeira vez que o leitor se pronuncia sobre o que considera ou não engraçado. Os quadrinhos vez ou outra recebem duras críticas de leitores que acham que as tirinhas viraram "indecência". O curioso é que as reclamações são endereçadas às tirinhas de Estela May e Fabiane Langona.

 Pretendo voltar ao assunto, mas suspeito que o fato de as duas serem mulheres—jovens e desbocadas--explicaria muito desse desconforto.

 

O discurso humorístico não é neutro e achar ou não graça de uma piada diz muito sobre quem somos.

Em nome da pluralidade e da liberdade de expressão, porém, não é possível estabelecer quem vai poder exercer o humor sobre quem ou o quê. Um excelente castigo para o humorista é não ser engraçado.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas