Siga a folha

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

Estética do churrasco cresce no sertanejo e toma o lugar do arroz e feijão

Clipes e DVDs de artistas têm como pano de fundo a encenação de confraternizações com muita carne assada ao ar livre

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

A estética do churrasco vem adentrando de forma cada vez mais evidente a música sertaneja. Vários DVDs e clipes de artistas atuais têm como pano de fundo a encenação de confraternizações mediadas pela cultura da carne assada ao ar livre, ilustrando um Brasil que parece substituir simbolicamente o feijão com arroz pelo churrasco como símbolo da identidade nacional.

Imagem do festival 'BBQ Mix' - Divulgação

Em 11 de agosto de 2019, Fernando e Sorocaba gravaram na cidade de Indaiatuba, no interior paulista, o DVD "Isso É Churrasco Onfire". Em 2023 eles repetiram a dose do projeto, no qual celebram a cultura carnívora com patrocínio da Friboi.

Em entrevista à coluna de Leo Dias, do Metrópoles, o sertanejo Sorocaba comentou: "Como os nossos fãs já sabem, o churrasco é muito mais do que comer bem, é estar em volta do fogo, entre amigos, para dividir bons momentos, ouvir música e falar das coisas boas da vida. Isso sempre foi uma rotina em casa, mas poder amplificar isso para um número maior de pessoas como está sendo feito no ‘Isso É Churrasco OnFire’. Está sendo mágico!".

Outros artistas seguiram o modelo. Pouco antes da quarentena, em março de 2020, Michel Teló lançou o DVD "Churrasco do Teló", no qual realizava um show ao ar livre e uma caminhonete servia de churrasqueira portátil.

É muito comum ver fotos de churrasco nas redes sociais dos artistas sertanejos, seja nos encontros da vida particular com a família e amigos ou até mesmo quando se reúnem para compromissos profissionais, especialmente para compor. Mas até pouco tempo atrás a autopromoção por meio da estética churrasqueira não estava presente na música sertaneja.

A apologia da carne em clipes e DVDs é uma estética relativamente nova. Mesmo na geração universitária, aquela surgida a partir de 2005, à qual pertencem Fernando e Sorocaba e Michel Teló, essa estética praticamente não existia. Embora houvesse canções que falassem de churrasco, a estética dos clipes musicais não contemplava essa celebração.

A referência a churrasco nos shows e nos videoclipes ganhou força com o surgimento do "agronejo", segmento do sertanejo mais diretamente afinado ao agronegócio surgido por volta de 2020. A partir dessa guinada temática, tornou-se comum ver cenas de animais no espeto, carnes sendo salgadas e brasa dourando nos videoclipes.

Em "Nois É da Roça, Bebê", canção de 2021, Ana Castela aparece preparando ela mesma o churrasco para as amigas e cantando: "Aqui nóis é da roça, bebê/ o sistema eu vou falar pro cê/ Nóis gosta de som trepidando/ cerveja e churrasco…". Em "Chaaama" (2021), Zé Neto e Cristiano comentam: "Churrasco, viola, no meio ou no fim de semana/ Chaaama/ E se tiver Brahma gelada, aí que nóis derrama/ Chaaama".

O DVD "Churrasco, Cerveja e Viola", uma coletânea de músicas cantadas por artistas sertanejos veiculada no YouTube e nas plataformas digitais em 2020, mostra cenas de um churrasco campal, com leitões e muito gado sendo assados inteiros ao ar livre.

Em fevereiro de 2020, a Audiomix, um dos principais escritórios empresariais do mundo sertanejo, criou a primeira edição do festival musical BBQ Mix, que reuniu 40 mil pessoas em Goiânia. O evento entrou para o Guinness World Records como a maior quantidade de porções de carne bovina servidas em oito horas—23 mil porções com peso entre cem gramas e 130 gramas.

Durante o evento houve uma chuva intensa que prejudicou os resultados desejados pelos produtores. Em 2022, o evento, realizado no estacionamento do Estádio Serra Dourada, bateu o próprio recorde com 52 mil porções servidas —tudo mediado por shows de Bruno e Marrone, Matogrosso e Mathias, Edson e Hudson, Gian e Giovani, Barões da Pisadinha e vários outros artistas.

Assim, a estética carnívora foi sendo incorporada pela cultura "mainstream" dos grandes shows sertanejos, transformando simbolicamente hábitos alimentares históricos do brasileiro.

Historicamente, a carne não fazia parte da dieta do brasileiro. Foi dos anos 1970 para cá, com o aumento exponencial de cabeças de gado no país, que a massificação da cultura da carne se impôs como hábito alimentar entre os setores médios e até nas classes baixas.

No país onde vivem mais bois do que gente, a cultura carnívora é propagandeada como símbolo de status. Diante do marketing do agronegócio, tensiona-se o imaginário do país do feijão com arroz, que tanto marcou a identidade brasileira no século 20. Popular, barato e vegetariano, o feijão com arroz era o prato do povo brasileiro, até na sua mistura de cor.

Se somos o que comemos, o Brasil carnívoro cantado pelos sertanejos aponta para outra identidade alimentícia. Proteicamente, pode até ser que haja ganhos. Resta saber melhor quais serão os resultados simbólicos dessa incorporação.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas